O Sumô (相撲) é um esporte extremamente popular no Japão, competições e torneios acontecem praticamente o ano inteiro, seja para classificação, seja disputando o título. No esporte dominado por homens, o sumô feminino no Japão sobrevive em meio a muita luta.
Por falta de visibilidade, há quem se surpreenda, que existam mulheres que dedicam suas vidas ao sumô, que lutam desde a infância e sonham com a possibilidade de viver em função desse esporte que é uma paixão nacional.

O motivo? Inexistentes competições profissionais de sumô feminino. As razões para a proibição são diversas: vãos das raízes ligadas a tradições espirituais do Japão ao longo dos últimos 1500 anos, até a questão da desigualdade de gênero que persiste até os dias de hoje.
Acompanhe nesse artigo a luta das mulheres japonesas pelo reconhecimento profissional do sumô feminino, suas histórias, sonhos e aspirações para o futuro pessoal e o futuro do esporte no Japão.
Invisibilidade do sumô feminino no Japão
A história das mulheres japonesas que praticam sumô de forma não romantizável, é um mundo onde as principais lutas acontecem fora do ringue em feito por homens para homens. Não há espaço para mulheres.
Lindsey E. DeWitt, PhD em cultura e línguas asiáticas descreve a situação em que o esporte permanece no país em seu artigo Japan’s Sacred Sumo and the Exclusion of Women: The Olympic Male Sumo Wrestler (O Sumô Sagrado do Japão e a Exclusão das Mulheres: O Lutador de Sumô Masculino Olímpico).

As mulheres japonesas enfrentam muitas dificuldades ao longo de suas vidas. O relatório Global Gender Gap (Desigualdade de Gênero Global) de 2022 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revela que o Japão ocupa a 116ª posição entre 146 pesquisados, sendo a terceira maior economia mundial.

Mas no sumô, as coisas são levadas a outro patamar. Mulheres são proibidas até mesmo de tocar no Dohyō (“土俵”), o ringue quadrilateral coberto de arroz com um círculo central que os osumōsan (お相撲さん) se enfrentam.
Uma segregação multidimensional na sociedade japonesa que envolve as esferas religiosas, culturais, de gênero e do próprio estado nacional que questiona a suposta secularidade, isto é, a condição do mundo em relação ao seu próprio tempo da esfera pública do Japão.
Nyonin Kinsei: Proibido Mulheres
Uma das formas mais antigas de legitimação da exclusão feminina nas atividades públicas do Japão utilizadas até hoje, principalmente no que diz respeito ao sumô feminino, é o Nyonin Kinsei (“女人禁制”, proibido mulheres), também conhecido como Nyonin Kekkai (女人結界).
O termo surgiu há aproximadamente 1300 anos atrás no sagrado Monte Ōmine, sul da província de Nara, onde fica o Ōminesan-ji, um dos sete templos Shugendō, uma forma de budismo japonês que mistura tradições e folclores indígenas, Tao e shintō.
![Entrada para a subida ao santuário Ōminesan-ji, Monte Ōmine, Sul de Nara. Na placa, a proibição a mulheres: "Mulheres não são permitidas: através de uma resolução dessa montanha sagrada, Ominesan, proíbe qualquer mulher escalar [a montanha] a partir daqui, de acordo com a tradição religiosa"](https://i0.wp.com/japaoreal.com/wp-content/uploads/2023/02/nyonin-kinsei-sumo-feminino-shinto-segregacao-social.jpg?resize=765%2C459&ssl=1)
Por causa da proibição Nyonin Kinsei as mulheres foram e seguem sendo, em maior ou menor medida atualmente, segregadas de boa parte da vida pública do Japão como atividades religiosas em geral, pesca, caça, construção civil, fazer sushi, produtora de sakê e de cerâmica.
Com o sumô não é diferente. Isso porque, em sua origem, o sumô é uma atividade sagrada entre deidades masculinas e homens mortais nos santuários shintō do país. Em muitos aspectos, o sumô é visto como uma tradição religiosa.
Nihon Sumo Kyōkai (“日本相撲協会”, Associação Japonesa de Sumô), um órgão tutelado pelo Ministério da Educação, Cultura, Esporte, Ciências e Tecnologia do Japão insiste que é uma questão Shūkyōteki Dentō (“宗教的伝統”, Tradição Religiosa).
Shūkyōteki Dentō e o sumô feminino
Um dos principais argumentos do Nihon Sumo Kyōkai é a questão Shūkyōteki Dentō, isto é, a tradição religiosa. Tokitsukaze Katsuo, presidente da associação (Rijichō, “理事長”) entre 1998 a 2002, afirmou sobre a proibição de mulheres competindo profissionalmente no sumô:
“O sumô profissional defende a tradição de não permitir que mulheres entrem no Dohyō baseados em rituais aos kami e nós queremos preservar essa tradição.”, afirmou Tokitsukaze em meados dos anos 2000.

Para as crenças shintō (e justiça seja feita, praticamente todas as religiões do mundo, incluindo o budismo e o próprio cristianismo), a menstruação é uma impureza, portanto, nessa visão de mundo, a mulher é um ser impuro.
É importante pontuar que se passaram 1500 anos de desenvolvimento técnico, econômico, ético, filosófico e espiritual desde o surgimento do sumô, mas essa mentalidade persiste com raízes profundas na sociedade japonesa.

Em abril de 2018, o atual presidente da Nihon Sumo Kyōkai, Nobuyoshi Hokutoumi, foi questionado pela política de proibição do sumô feminino profissional. Hakkaku fez uma declaração citando três motivos para manter o sumo feminino profissional proibido:
- As raízes do sumo são baseadas rituais dedicados a deidades;
- Preservar a cultura do sumô profissional;
- O ringue de sumô, o Dohyō, é um Shinseina Tatakai No Ba (campo de batalha sagrado) e um local de treinamento para homens.
A Nihon Sumo Kyōkai é uma corporação e uma organização praticamente governamental que, apesar de todas as críticas a sua política, atua como uma espécie de administrador do interesse público em assuntos relativos à religião, tradição e ‘o lugar das mulheres na sociedade’.
Pode parecer um exagero dizer que a associação atua como administrador do lugar das mulheres na sociedade japonesa. Infelizmente não é o caso. A proibição do sumô feminino pela associação tem ramificações reais no dia a dia e na tomada de decisões no país.

Quando presidiu o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Tokyo, o ex-primeiro ministro do Japão, Yoshiro Mori disse em uma reunião no começo de 2021 para discutir a meta estabelecida pelo próprio comitê em 2019 de ter 40% dos membros do sexo feminino:
“Se aumentarmos o número de membros do sexo feminino [no comitê], temos que assegurar que seu tempo de fala seja restrito de alguma forma, elas têm dificuldade em terminar de falar, o que é irritante. Temos sete mulheres no comitê organizador, mas todos sabem o seu lugar.” – Yoshiro Mori, ex-presidente do comitê organizador dos Jogos Olímpicos e ex-primeiro ministro do Japão
Discussão pública do sumô feminino no Japão
O debate público na sociedade japonesa, seja na sociedade civil, seja nos meios de comunicação é um dos grandes colaboradores com o silenciamento de mulheres a quem são negadas o direito de competirem profissionalmente no esporte que amam.

Os questionamentos sobre a segregação das mulheres no sumô ou nas práticas religiosas (o nyonin kinsei foi formalmente abolido em 27 de março de 1871 pelo governo do Imperador Meiji) surge apenas em 1978 e só reaparece de tempos em tempos.
Então, apesar da proibição do nyonin kinsei, a lei que já vigora a mais de 150 anos parece ter um efeito de institucionalidade meramente estética. Um caso de abril de 2018 na cidade de Maizuru, prefeitura de Kyoto, é revelador sobre a ilusão do fim da segregação entre gênero.

No dia 4 de abril, o Maizuru Culture Park Gymnasium realizou o 75º tour regional de primavera de sumô profissional. Na solenidade de abertura, o então prefeito Ryozo Tatami espalhava um pouco de arroz pelo Dohyō e discursava para o público dando-lhes boas-vindas.
Em meio ao discurso, Tatami teve um mal súbito e colapsou no Dohyō. Os homens ao lado do prefeito não sabiam o que fazer. De repente, duas mulheres que acompanhavam o evento subiram ao Dohyō, afastaram os homens e iniciaram o procedimento RCP.

Por 47 segundos, as duas profissionais da área médica realizaram a reanimação cardiopulmonar em Ryozo. Outras mulheres também somaram esforços no socorro ao prefeito poucos instantes depois.
Enquanto reanimavam o prefeito, vítima de uma hemorragia cerebral conforme reportado posteriormente, o jovem apresentador do evento disse ao microfone:
“Josei no kata wa dohyō kara orite kudasai! Josei no kata wa dohyō kara orite kudasai! Josei no kata wa dohyō kara orite kudasai, dansei ga oagarikudasai! (Mulheres, por favor desçam do ringue! Mulheres, por favor desçam do ringue! Mulheres, por favor desçam do ringue, homens, por favor entrem no ringue)”.
As mulheres foram de fato retiradas do Dohyō. A tradição do sumô (também do shintō em muitos aspectos) diz que a presença de mulheres polui os locais sagrados, nesse caso o Dohyō. Isso significa necessariamente que, nessa visão de mundo, as mulheres são impuras.
Após a ocorrência, o Dohyō foi “purificado” com uma quantidade considerável de sal. A repercussão do caso foi a pior possível, dentro e fora do Japão. Esses foram alguns dos títulos das manchetes que reportaram o caso:
- The Asahi Shimbun: “Large Amount of Salt Sprinkled on Sumo Ring after Women Save Fallen Mayor’s Life” (Grande quantidade de sal é espalhado no anel de sumô após mulheres salvarem a vida do prefeito);
- Independent: “Japanese Women Attempting to Save Man’s Life after Suffering Stroke in Sumo Ring Ordered to Leave for Being ‘Ritually Unclean” (Mulheres japonesas que tentaram salvaram a vida de homem que sofreu um derrame em ringue de sumô são ordenadas a sair [do ringue] para “ritual de purificação”);
- The New York Times: “Women Barred from Sumo Ring, Even to Save a Man’s Life” (Mulheres são barradas do ringue de sumô, mesmo para salvar a vida de um homem).
Com a repercussão negativa, o presidente da Nihon Sumo Kyōkai, Nobuyoshi Hokutoumi, pediu desculpas pelo ocorrido e afirmou que a situação foi imprópria. Contudo, depois do dia do incidente em Maizuru, o evento foi realizado na cidade de Takarazuka, prefeitura de Hyogo.
Takarazuka é uma cidade famosa pela Takarazuka Gekidan (宝塚歌劇団), uma companhia de teatro formado exclusivamente por mulheres desde 1914 e tem uma história incrível, uma coincidência simbólica que dá liga a sucessão trágica de acontecimentos vindos desde Maizuru.

Como de praxe, o prefeito da cidade abre o evento discursando dentro do Dohyō. Porém, a cidade tinha uma prefeita, Nakagawa Tomoko. No ano anterior, ela havia aceitado discursar fora do ringue, mas com a repercussão do evento anterior, Tomoko pediu para a Nihon Sumo Kyōkai para discursar sob o Dohyō, o que lhe foi prontamente negado.
Em mais um momento de profundo constrangimento para as mulheres, Nakawa Tomoko discursa no dia 6 de abril em um palco abaixo do Dohyō. Em um trecho emocionado de seu discurso, a prefeita disse ao público:
“Mulheres e prefeitas também são seres humanos. Estou frustrada por não poder realizar esse discurso no Dohyō só por eu ser uma mulher. Os tempos mudaram e o número de prefeitas está aumentando. Um dia, talvez tenhamos uma mulher ocupando o cargo de primeira ministra. È importante ter coragem para mudar aquilo que precisa ser mudado”.
Com dois escândalos a nível nacional e internacional em quatro dias, a Nihon Sumo Kyōkai se envolveu em mais um escândalo dois dias depois da prefeita de Takarazuka ter de discursar fora do Dohyō.
No dia 8 de abril, a cidade de Shizuoka, capital da prefeitura de mesmo nome, tinha programado um evento chamado Chibikko Sumo. O evento recebe alguns dos maiores rikishi fazem uma sessão de treinamento com crianças do primário.

No evento do ano anterior em 2017, meninos e meninas puderam subir no Dohyō e treinar com alguns dos grandes nomes do esporte. Apesar dos escândalos em Maizuru e Takarazuka, a Nihon Sumo Kyōkai obrigou o evento a não permitir a presença de meninas.
Cinco garotas que treinavam sumô em clubes da cidade ficaram a ver navios, mesmo tendo se preparado e planejado a participação no Chibikko Sumo, entre elas, a vencedora do All Japan Women’s Sumo Championship de 2017. O caso também repercutiu negativamente:
- Huffpost: “Little Tykes’ Sumo’ Also Off Limits: Sumo Association Demands That Girls Not Enter the Ring” (Pequenas lutadoras de sumô também estão fora dos limites: Associação de Sumô exige que meninas não entrem no ringue);
- FNN: “‘The Girls Looked Lonely’: Even Little Tykes’ Sumo ‘Prohibited to Women’” (A garota parecia abandonada: ‘Proibido para Mulheres’ até mesmo para pequenas lutadoras)
A exigência da Nihon Sumo Kyōkai foi feita há apenas quatro dias do Chibikko Sumo. O prefeito Tanabe Nobuhiro exigiu os mesmos direitos ao discurso para todos os prefeitos, independentemente do gênero.
Problemas da tradição
A exclusão da presença feminina no sumô (e em alguns locais considerados sagrados no Japão) é um problema transversal que atinge diretamente crianças, profissionais de saúde qualificadas e até mesmo de autoridades públicas.

O Ministério da Educação, Cultura, Esporte, Ciências e Tecnologia do Japão alega que a Associação de Sumô deve ter autonomia para preservar a cultura, a Associação e seus filiados repetem um mantra de que o Sumô é ancestral, sagrado e exclusivamente masculino.
A proibição imposta pelo governo do Imperador Meiji ocorreu no dia 27 de março de 1871.

É preciso ter clareza de que isso só é possível pela transversalidade do problema. A Nihon Sumo Kyōkai é um órgão tutelado por uma pasta ministerial, o sumô é o esporte mais popular do Japão e tudo isso se mantém graças aos patrocinadores.
Apesar de seu segregacionismo evidente, o sumô teve poder para se fazer presente nos estádios dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tokyo 2020 e na terceira edição da moeda comemorativa de JP¥ 10 mil, tudo credenciado pelos patrocinadores, mesmo após uma série de escândalos.
Histórias do sumô feminino no Japão
É em meio terreno de batalha pantanoso que as mulheres batalham pelo direito de o sumô feminino existir como categoria profissional contra uma política que vem reforçando suas posições nos últimos 1500 anos.

Em meio a tamanha opressão, há muitas mulheres que desafiam o status quo e que ocasionalmente encontram aliados do sexo masculino, pessoas que entendem e estendem a sacralidade de seus ritos a todos seus semelhantes.
Conheça histórias de mulheres reais que são a ponta de lança, que vem de baixo para cima abertamente contra as regras ditadas de cima para baixo por homens poderosos há milênios.
Joshi Sumo: as lutadoras de sumô
As lutadoras de sumô do Japão, conhecidas como Joshi Sumo (女子相撲) estão em situação semelhante aos 300 espartanos, 700 téspios e 400 tebanos na Batalha Termópilas durante a Segunda Guerra Médica entre a aliança das pólis helênicas contra o Império Persa de Xerxes.
Em artigo publicado em novembro de 2016 pelo periódico italiano Grazia, edição francesa, Agnès Redon revela que para cada garota entre 18 e 21 anos que competem em campeonatos juvenis, há 300 garotos competindo.

E para as veteranas, tal como os helênicos no desfiladeiro de Termópilas, as joshi sumo defendem um caminho seguro e livre para que outras ingressem no esporte e lutem também para conquistar o direito do sumô feminino se profissionalizar.
E para isso, elas treinam duro e pesado. Na Nihon University, na capital japonesa, por exemplo, as atletas “amadoras” são treinadas junto com seus colegas do sexo masculino por Hideto Tsushima, um homem que afirmou em entrevista a Agnès Redon:
“Os japoneses tem uma imagem mental do sumô de lutadores corpulentos e com as nádegas à mostra, o que seria impróprio para mulheres quando na verdade, elas são perfeitamente capazes de fazê-lo.” – Hideto Tsushima, técnico de sumô da Nihon University
Perder não é uma opção
Em 87 países que realizam competições (nacionais e internacionais), para o sumô feminino japonês, perder não é uma opção, nunca. Tanto quanto, ou até mais do que os homens, para essas mulheres, o sumô é sagrado.
As joshi sumo costumam treinar com colegas do sexo masculino, o que pode aumentar a dificuldade em relação a tamanho, peso e força, uma espécie de microcosmos que essas atletas enfrentam todos os dias por amor ao sumô.
A vida de joshi sumo que treinam na Nihon University foi acompanhada e registrada de forma belíssima pelo fotojornalista Nicolas Datiche, ele afirma que demorou a se dar conta da importância do sumô na vida dessas jovens.
Perder uma batalha tem um significado muito profundo, um sentimento de que todas as joshi sumo falharam: “É emocionante por que quando elas perdem, é como se o mundo inteiro desabasse sobre suas cabeças”, afirmou Datiche.
A determinação de Kokona Hasegawa
Kokona Hasegawa é aluna da Kizukuri Junior High School e a única garota no time de sumô de sua escola. Com cerca de 1,70m de altura, Kokona não parece nem de longe mais fraca que seus colegas.
Kokona começou no esporte no segundo ano do ensino fundamental no clube Tsugaru Asahifuji Junior Club, fundado em homenagem ao yokuzona Asahifuji, natural da cidade de Kizukuri, prefeitura de Aomori.

Em seus primeiros desafios, nenhum de seus colegas meninos foram páreos para ela. Atualmente, cursando o terceiro ano do ensino médio, Kokona contou ao Asahi Shimbun que está preocupada:
“Foi muito divertido por um tempo, mas os meninos se tornaram mais fortes, o que me deixa preocupada”, contou ao jornal com um sorriso um pouco nervoso.
Especialista na técnica chamada migi-sashi, que consiste em colocar seu braço direito embaixo da axila esquerda do oponente para forçá-lo para fora do dohyō, após um movimento de impulsão.

Ao longo de suas disputas em torneios nacionais, a jovem joshi sumo foi a segunda colocada no torneio individual nacional na quinta série do ensino fundamental e o terceiro lugar em outro torneio nacional no ano seguinte. Mas ela não está satisfeita com seu desempenho.
Durante a pandemia, Kokona praticava o shiko, movimento com os pés que trabalha três princípios básicos do sumô, isto é, o equilíbrio, a força e a flexibilidade, cerca de 200 vezes ao dia.
Quando pôde voltar a treinar com seus colegas, Kokona Hasekawa lutou 15 vezes com seus colegas e realizou 10 treinamentos butsukari-geiko, uma sessão de exercícios bem extenuante, tudo para competir no nível do ensino médio e se tornar a campeã nacional.
A nova geração de joshi sumo
O sumô feminino vem crescendo, e apesar de carregar a pecha de competição “amadora”, não se engane, a Japan Women’s Sumo Federation (日本女子相撲連盟), organização fundada em 1996 avança lenta, mas progressivamente e aumentando suas fileiras.
Há toda uma geração de garotas inspiradas pelo amor ao sumô e que sonham com a possibilidade de viver do, e para o sumô, no heya e no dohyō, como uma joshi sumo profissional, respeitada e prestigiada da mesma forma que os rikishi.
Senna Kajiwara, uma garota de voz suave de 12 anos foi a primeira campeã do torneio nacional de sumô na sua categoria (entre 8 e 12 anos), o Women’s Wanpaku Sumo, um evento histórico realizado dia 26 de agosto de 2019 no Okudo Sogo Sport Center.

Na ocasião, o Women’s Wanpaku Sumo reuniu 180 jovens joshi sumo de todo o Japão. A jovem Senna Kajiwara que começou a praticar sumô junto com judô aos 8 anos está determinada a manter seu título.
“Algumas pessoas ficam chocadas quando descobrem que faço sumô. Eles tendem a pensar que o sumô é somente para garotos e homens. Penso que se houver mais garotas e mulheres no sumô, então seremos capazes de nivelar o jogo e viver do sumô. Espero que isso aconteça.”, Senna Kajiwara, joshi sumo de 12 anos, campeã nacional da Women’s Wanpaku Sumo
Na edição de 2021, Senna manteve sua ambição e venceu na categoria de 12 anos, foi seu último ano competindo no ensino fundamental. A partir de 2022, a jovem passou a defender o sumô de sua prefeitura, Hyogo, a em competições para estudantes do ensino médio.

Determinada, Senna afirma não temer o ringue e vai além: “Algumas pessoas não entendem por que faço sumô, mas não me incomodo com o que pensam. Se você quer fazer sumô, então você deve fazer sumô. Fazer sumô te ensina a nunca desistir e se fortalecer”.
Novos talentos
Miki Ouike é uma joshi sumo e se orgulha do número de garotas que ela treina e dá aulas, ao mesmo tempo, que lamenta a falta de clubes de sumô para elas no país. A consequência é óbvia: a maioria das garotas que se tornaram artistas marciais escolherão o judô em vez do sumô.

Entre as alunas de Ouike, a grande promessa é uma garota de 12 anos, Nikori Hara, campeã do campeonato regional. Agora ela treina para conquistar os próximos Wankapu, que deverá ver um crescimento exponencial no número de competidoras nos próximos anos.
O clube que Miki dá aulas não é exclusivo para garotas, portanto, suas garotas têm de treinar com seus colegas do sexo masculino. Ela conta, gostaria que mais meninas soubessem que há torneios para elas no sumô. a visibilidade é ainda um terrível obstáculo a ser superado.
Apesar de tudo, há simpatia e maior interesse da sociedade japonesa pelo sumô feminino. Os treinamentos unissex de sumô são comuns em todas as regiões, nas atividades extracurriculares das escolas, clubes locais ou estimulado pelas comunidades, afinal, é o principal esporte nacional.

As garotas são bem-vindas nos clubes de sumô nas universidades japonesas, e mesmo no ensino superior, as jovens joshi sumo precisam treinar com seus colegas do sexo masculino, os números são muito desvantajosos: uma garota a cada 300 garotos.
As limitações de estrutura
Hiyori Kon, joshi sumo de 25 anos e membro da equipe nacional de sumô feminino do Japão tem uma vida dupla. Kon é protagonista dos documentários Ela Luta Sumô de 2018 e Love & Hate or Believe de 2019.
Sua história a fez entrar para a lista da BBC como uma das 100 mulheres mais inspiradoras e influentes do mundo em 2019. Apesar da repercussão, Hiyori trabalha em uma empresa na prefeitura de Aichi e participa de campeonatos internacionais.
Por ser uma atleta amadora, é impossível para ela se dedicar integralmente ao sumô feminino e viver em um heya como os profissionais. As dificuldades não param por aí. Kon aponta para a falta de mulheres treinando outras mulheres.
Para Kon, os treinadores não entendem as aspirações e necessidades do sumô feminino. A pior parte, porém, é a financeira, afinal, o sumô profissional é um esporte que pode oferecer uma vida digna a seus atletas.

Quanto mais próximo do topo da cadeia hierárquica (o sumô possui seis divisões: makuuchi, jūryō, makushita, sandanme, jonidan e jonokuchi respectivamente), maiores os ganhos. Os Yokozuna, atletas de elite recebem salários de aproximadamente US$ 25 mil.
Todos começam na mais baixa, a jonokuchi. Contudo, essa divisão tem um número fixo de lutadores, 40. Cada divisão tem seu número fixo de atletas, e somente a eles são concedidos o direito de viver em um heya.
Isso no sumô profissional, para as joshi sumo que estão fadadas a exclusão dessa possibilidade, as possibilidades econômicas são infinitamente menores. É uma questão de visibilidade, e portanto, patrocínio, investimento, publicidade, um mercado consumidor.
“O sumô feminino é visto como um esporte menor, a equipe nacional do Japão sequer consegue treinar em um local adequado por falta de recursos financeiros. A questão principal é como estabeleceremos uma liga e transformar o sumô amador em sumô profissional”, afirma Kon em entrevista à CNN Sport durante a Women’s Wanpaku Sumo realizada em 5 de janeiro de 2022.
Mas apesar da dificuldade, Hiyori Kon tem orgulho do que foi alcançado até aqui, especialmente no estabelecimento de um Wanpaku para meninas de 8 a 12 anos:

“A sociedade japonesa está mais aberta ao sumô feminino. Este é o segundo ano que realizamos o Women’s Wanpaku Sumo e estou orgulhosa que nós tenhamos feito isso do zero, passando do primeiro para o segundo torneio”, disse Kon.
Nana-chan: a sensação mirim de Shibata
Na cidade de Shibata, prefeitura de Niigata, uma adolescente de 14 é um símbolo de orgulho para sua comunidade, sua família e, especialmente, para o sumô feminino. Você pode encontrar pôsters da jovem joshi sumo em loja e comércios locais, o nome dela: Nana Abe

Conhecida como Nana-chan, a jovem encantou a fotojornalista moscovita, Yulia Skogoreva, especialista em movimento e dança que acompanhou a vida da jovem durante um período, o trabalho de Yulia pode ser conferido clicando aqui.
Na época do trabalho realizado por Skogoreva, Nana-chan tinha apenas 11 anos. Durante o Wanpaku realizado em 2019, a fotojornalista viu o tamanho da pequena Nana-chan dentro de um evento que parecia uma competição amigável entre garotas de 8 a 12 anos.

Mas, quando a estrela de Shibata entrou em cena, seus fãs vibravam, levantavam cartazes e gritavam pelo seu nome. A fotojornalista russa ficou espantada com o sucesso de Nana-chan considerando a quase invisibilidade da categoria de sumô feminino.
A jovem joshi sumo não tem fãs apenas em sua cidade natal, seus admiradores estão espalhados por todo o Japão. Mais do que isso, o maior suporte de Nana Abe vem de sua família. Seus pais construíram um ringue no quintal de casa para que ela possa treinar todos os dias.

Apesar da pouca idade, a joshi sumo tem uma dedicação transcendente e faz com que seja uma inspiração para todos ao redor e para outras garotas, que levam o sumô a sério. Uma vez, após vencer uma competição, seu nome foi colocado em frente da prefeitura municipal por fãs.
Leia também
- Pesquisa revela impactos psicológicos e sociais da pobreza menstrual no Japão
- Politician Harassment White Paper: assédio sexual na política do Japão
- Itako: conheça as tradicionais médiuns cegas de Aomori
Uma visão estrangeira e feminina
Para Yulia Skogoreva, fotojornalista especializada em movimento e dança, radicada no Japão há 10 anos, seu primeiro contato com o sumô feminino a impressionou. Habituada a fotografar dança, dançarinas e dançarinos, bailarinas e bailarinos, viu no sumô algo semelhante.
Em conversa com Paul McInnes, editor sênior da principal revista sobre o Japão em inglês, a Tokyo Weekender, Yulia contou que a seus olhos, o sumô é uma forma de dança ou performance, afinal, são corpos em movimento.

“Sempre me impressiono com o quão flexível elas são. Algumas das lutadoras de sumô são capazes de ter uma abertura completa de pernas e as levantam muito alto. Você pode perfeitamente criar uma dança inspirada nos movimentos de sumô. Na verdade, essa é uma ideia para um trabalho futuro de uma coreografia baseada nos movimentos do sumô.” – Yulia Skogoreva
Seu contato com o sumô feminino aconteceu de uma maneira incomum. Skogoreva fez algumas colaborações com calígrafos japoneses e artesãos de cerâmica. A fotojornalista se encantou com os movimentos desses artistas por tanto se assemelharem a uma dança.

Depois dessas experiências, Yulia ficou curiosa sobre o sumô e começou a pesquisar. Foi só então que descobriu a existência do sumô feminino, uma categoria muito mais profunda, pois o sumô feminino não é só sobre corpos se movimentando.
Por isso, não é menos relevante que os corpos femininos sejam captados, fotografados, filmados e registrados pelos olhares femininos, seja nas danças ou nos esportes para que eles sejam exaltados por suas competências técnicas e dedicação, e não como fetiche exótico (ultra)sexualizado.

Ávida por mais informações, a fotojornalista enfrentou muita dificuldade em entrar em contato com alguma joshi sumo, e para conseguir fotografar até mesmo a categoria “amadora” de sumô. é preciso receber uma autorização da Nihon Sumo Kyōkai.
Yulia precisou de empenho e paciência de quase um ano de insistência para finalmente obtê-la, foi assim que acabou conhecendo Nana-chan, sua família e foi autorizada pelos pais de Nana Abe para acompanhar o cotidiano da pequena grande estrela de Shibata.

“Há muitas garotas no Japão que sonham em ter uma carreira profissional. Tentei entrar em contato com elas, o que é muito difícil, muitas não têm redes sociais, e mesmo que tivessem, não são fáceis de encontrar”, contou Yulia a McInnes.
Skogoreva segue em contato de tempos em tempos com Nana-chan e o projeto fotográfico com a joshi sumo continua em produção. Yulia espera contribuir com a luta das mulheres japonesas pelo direito de competir profissionalmente no dohyō e viver com dignidade da, e para a luta.
A vida das joshi sumo segundo Lisa Monin
Em outubro de 2022, o canal franco-germânico ARTE, um dos mais plurais Europa, lançou o documentário Japan: Womem in Sumo (Japão: Mulheres no Sumô) produzido por Lisa Monin, jornalista investigativa, em parceria com seu colega também investigativo, Paul Cabanis.
O documentário acompanha a rotina de Sakura Ishii, uma garota de 17 anos que iniciou no esporte aos 8 anos (vencendo em primeiro lugar em sua primeira competição), única joshi sumo do clube de sumô de sua escola.

Com a proibição da categoria profissional de sumô feminino, Sakura vê a janela de seu sonho de defender o Japão no sumô nos Jogos Olímpicos, agora que o sumô foi reconhecido pelo COI (Comitê Olímpico Internacional) como esporte, minguar.
Com quase 18 anos Sakura percebe, que no tempo em que o sumô for uma modalidade olímpica, será velha demais para competir. Isso porque para se tornar esporte olímpico, o COI exige paridade de gênero no esporte.

É uma pressão externa considerável, uma vez que o esporte é o mais popular do Japão e está presente em quase 100 países. Mas não há nenhuma demonstração de que a Nihon Sumo Kyōkai pretenda mudar sua posição.
O documentário de 25 minutos também acompanha a rotina e os dramas que a equipe de sumô feminino da Asahi University (liderada por Nami Yaguchi) vivem. Confira.
0 comentário em “Sumô feminino no Japão: uma luta pelo direito ao dohyō”