Já ouviu falar das Itako, as médiuns cegas de Aomori? Por mais caricato que possa soar, essas sacerdotisas, ou xamãs, existem há cerca de 250 anos no Japão, mas a falta de adeptas e praticantes ameaça a existência das Itako (イタコ) e suas práticas espirituais.
Itako
As Itako, também conhecidas como Ichiko (市子) ou Ogamisama (男神様), são mulheres treinadas para servirem de intermediárias entre o reino dos humanos com os reinos espirituais, isto é, capazes de se comunicarem com os espíritos e kami.

Mais do que praticantes de Kuchiyose, isto é, uma técnica espiritual única do Japão de invocação de um espírito ou deidade, as itako também são mentoras espirituais para mulheres da região.
Quando as itako surgiram em meados da segunda metade do século XVIII, apenas mulheres que nasciam cegas poderiam exercer essa função sacerdotal, hoje, infelizmente, há apenas uma itako que nasceu cega e que já se aproxima de seu centenário.
As xamã de Aomori
A grosso modo, as grandes religiões japonesas são o shintō, religião originária do país, e o budismo que chegou por intermédio dos chineses – e em especial ao príncipe Shōtoku Taishi, responsável pela primeira constituição do Japão de 604, o Jūshichijō Kenpō (十七条憲法).
Mas, aproximando a perspectiva com lentes de contato, a espiritualidade japonesa é bem diversa em suas manifestações – ainda que dentro do contexto de uma sociedade baseada no budismo, confucionismo e sua expressão ancestral, o shintō.

No que diz respeito a mediunidade no Japão, destacamos três expressões significativas para a história e a cultura do Japão: Yuta (ユタ) e Noro (祝 女) em Okinawa, mas originárias do antigo reino de Ryukyu e Tuskur, as xamã do povo originário Ainu.
Apesar de algumas semelhanças, como o fato de todas essas expressões espirituais serem conduzidas única e exclusivamente por mulheres, por exemplo, Itako, Yuta, Noto e Tuskur não se confundem e têm características muito marcantes.
Preparação das itako
Uma das diferenças cruciais entre as Itako e suas pares médiuns e/ou xamãs é o preparo. Enquanto as Yuta, Nato e Tuskur, a grosso modo, incorporam um espírito ou uma deidade de forma espontânea, as itako são preparadas para o exercício de sua mediunidade.
Para ser uma itako, antes de mais nada, é necessário ser devidamente certificada no uso do Irataka, uma espécie de japamala budista (ou terço de contas para os cristãos católicos), e o Odaiji, um tubo de bambu com um sutra dentro utilizado na costa da itako.

Esses instrumentos são passados das mestras para suas discípulas, inclusive as orações. Essa é uma tradição que tem cerca de 250 anos e que começou com uma xamã cega chamada Taisobā, natural da região de Nanbu, atual leste da província de Aomori.
Mais do que uma prática espiritual, com a transmissão dos conhecimentos mediúnicos que Taisobā passou adiante, essa xamã criou uma vocação e uma função social para mulheres que nasciam sem visão.
Taisobā: a primeira itako
A história e a trajetória das Itako em Aomori, bem como em algumas regiões das prefeituras de Iwate e Miyagi – a região norte-nordeste da ilha de Honshu – estão bem documentadas na Aomori Prefectural Association for Preserving Itako Traditions (Associação Prefeitural de Aomori para a Preservação das Tradições Itako).
De acordo com Esashika Hitoshi, presidente da associação, Taisobā, a misteriosa xamã cega passou seus conhecimentos para um monge yamabushi (“山伏”, aquele que se prostrou na montanha) chamado Chōrinbō e para sua esposa, Takadatebā uma mulher cega de nascença.

O casal então aprendeu a canalizar espíritos desencarnados, algum tempo depois, Taisobā, Chōrinbō e Takadatebā criaram uma organização para mulheres cegas, as primeiras itako do Japão na região de Nanbu.
Quando essas mulheres, aprendizes do trio, aprenderam as técnicas e passaram a ter suas próprias discípulas, a cultura itako se espalhou. Contudo, o aprendizado era sofrível, afinal, eram cegos educando cegos sem recursos adequados.
Função e reconhecimento social
Durante a era feudal do Japão, a região de Tōhoku (Akita, Aomori, Fukushima, Iwate, Miyagi e Yamagata) foi, historicamente a mais precária em relação a alimentação e condições sanitárias de toda a ilha de Honshu.
Como consequência, muitas crianças perdiam a visão em decorrência dos constantes surtos de sarampo. Mas, mesmo com as mazelas da perda da visão, os homens especializavam-se na arte da acupuntura e moxabustão (acupuntura térmica), massagem e no shamisen.

E para as mulheres, graças a Chōrinbō e Takadatebā, mas especialmente por Taisobā, as garotas que nasciam ou perdiam a visão por causa de doenças, agora tinham uma função social só sua: intermediária entre mundos e conselheiras espirituais.
À medida que a demanda pela comunicação com entes queridos desencarnados crescia, a demanda por garotas para fazer a comunicação com os espíritos fez das itako uma profissão em meados de 1970.
Estudos e graduação
Tradicionalmente, os monges Yamabushi são ligados a escola Tendai ou Shingon de budismo, então, dada as circunstâncias em que surgiram as itako no Japão, o treinamento das novas médiuns comumente era realizado em templos da seita Tendai.
Não é tão simples se tornar uma e carregar o título de médium itako. Os estudos nas artes do Kuchiyose podem durar de três a cinco anos, não obstante, as candidatas a médiuns precisam realizar uma prova para se graduarem e serem autorizadas a atuar independentemente.

A cerimônia de graduação se chama Kami Tsuku, um ritual extremamente importante, nele, as aprendizes devem incorporar não um espírito qualquer, mas um espírito que será seu guardião para o resto de suas vidas.
30 dias antes do teste, as estudantes devem se abster do consumo de carne de peixe cru. No dia do Kami Tsuku, as futuras itako colocam arroz em um pequeno saco como se estivessem montando a cavalo.
Na frente das candidatas são posicionadas bandejas com alimentos, bebidas, incensos e outras oferenda aos espíritos. As formandas então colocam os pés nas bandejas, as mestras circundam as aprendizes e perguntam: “nan kami go tsuita?” (qual espírito se afeiçoou?).
Jūsanbutsu: os 13 Budas
A escola Shingon de budismo tem como patronos os famosos Jūsanbutsu (“十三仏”, 13 Budas), deidades compostas por Budas, Bodhisattvas e Myōō (Reis da Sabedoria). Os Treze Budas também são muito importantes para o rito funerário no Japão.
São eles: Fudō (Myō-ō), Shaka (Buda Sakyamuni), Monju (Bodhisattva), Fugen (Bodhisattva), Jizō (Bodhisattva), Miroku (Buda Maitreya), Yakushi (Buda), Kannon (Bodhisattva), Seishi (Bodhisattva), Amida (Buda), Ashuku (Buda), Dainichi (Buda) e Kokūzō (Bodhisattva).

Quando as aprendizes respondem a suas mestras, em geral são um dos Treze Budas que se afeiçoaram e elas. Após essa ligação de afinidade entre as partes é realizada uma cerimônia de união (casamento) entre a futura itako e a deidade.
Para a maioria das formandas, o Kami Tsuku é extremamente difícil, e mesmo com a ajuda de suas mestras e o longo e exigente treinamento, às vezes o ritual pode demandar até uma semana de orações constantes para o espírito vir e incorporar na médium.
Embora seja mais comum que as itako tenham como guardiões espirituais os Treze Budas, isso não quer dizer que as médiuns não tenham sido escolhidas por outro guardião, seja ele um buda, bodhisattva, myō-ō ou alguma outra deidade ou espírito.
Monte Osorezan
Visto como uma espécie de portal entre os mundos, isto é, o reino humano, reinos espirituais superiores e inferiores, o Monte Osore (Ozorezan) é um dos lugares mais sagrados do Japão e visto como a entrada para o inferno – dado as suas especificidades geológicas.
Conhecido pelo templo Osorezan Bodaiji fundado em meados do ano 862, um dos templos mais importantes do Japão, a região é um dos principais pontos de atendimento das itako. Os serviços dessas médiuns chegaram ao auge no pós-guerra entre as décadas de 50 e 70.
Contudo, não é por causa da sacralidade do Monte Osorezan que as médiuns itako são encontradas na região. Elas vão durante os grandes festivais que ocorrem no verão e no outono em busca de clientes, lá, são conhecidas como itakomachi.
Ao longo da história, essas médiuns e guias espirituais foram responsáveis por aconselhar outras mulheres, trazer respostas ou conforto aos que perderam alguém, exorcizar seres demoníacos ou espírito famintos, além de purificarem com a graça de seus guardiões.
Instrumentos de poder
De todos os instrumentos utilizados nos atendimentos realizados pelas itako como sal, velas, mochi, três são essenciais: o terço irataka, o tubo de bambu odaiji e as bonecas Oshira Kami, portanto, merecem uma observação mais detalhada.
- Irataka: esse terço ou rosário é utilizado por monges budistas da escola Shugendō (修験道), a diferença é o nome, o rosário dos monges se chama irataka nenju. Também utilizam o rosário irataka as médiuns Zatokata (“zato” é uma palavra antiga para padre ou sacerdote, e ”kata” é o termo utilizado para esposa) da região de Akita. Este terço tem aproximadamente 2,45m de comprimento e é feito com 300 sementes de saboneteira. Ossos de raposas ou de veado, chifres, garras de águia, dentes de ursos e outros adornos também podem compor o rosário, e cada um deles tem uma função ainda desconhecidas a desempenhar durante o trabalho das itako. É tratado com o máximo de reverência e nem todas as itako possuem um, uma vez que ele é transmitido de mestra para aprendiz somente após a morte da mestra;
- Odaiji: objeto sagrado muito comum a todas as xamãs e miko, esse tubo feito de bambu têm, em geral, nomes de deidades e budas em seu interior, além de parte de sutras para proteção espiritual da médium contra espíritos famintos e seres infernais. Outra função que o odaiji possui é capturar os espíritos dos animais que eventualmente possuem pessoas como os kitsune, espírito da raposa. O odaiji é carregado na costa das itako e todas as suas funções não são de conhecimento público;
- Oshira: oshira é um casal de bonecos, isto é, um boneco e uma boneca utilizados em rituais, o principal dele é o Oshira Kami. Em geral, têm aproximadamente 20 cm de tamanho e são feitos com madeira de amoreira. São vestidos com roupas simples de seda, a boneca possui quatro sinos acoplados e o boneco possui três.
Há outras instrumentárias em potencial como ossos da mandíbula de raposas, chifres de veado, dentes de urso, garras de águias, conchas que, em geral, estão atadas as contas do rosário irataka.
Supõe-se que esses objetos sejam utilizados para práticas divinatórias, contudo, nem a instrumentária, nem as práticas divinatórias tem origens budistas, são mais próximas as práticas da era dos Imperadores legendários do Japão (entre os séculos VII a.C. a III d.C.).
Origem do ritual Oshira Kami
De acordo com a lenda, um agricultor tinha uma filha e um cavalo. A filha do agricultor amava muito o cavalo e eventualmente acabou casando com ele. Ao saber do caso, o pai da garota se enfureceu, amarrou o cavalo em uma amoreira e arrancou sua cabeça.
Enlutada, a filha do agricultor montou na cabeça do cavalo e ambos ascendem aos céus se tornando deidades (kami). O casal retorna a Terra de tempos em tempos como bichos de seda que habitam as amoreiras.

Essa é a razão dos bonecos oshira serem feitos a partir de madeira de amoreira e suas roupas de seda. Há uma vertente teórica que indica a possibilidade da lenda e da tradição ter chego ao Japão com imigrantes da Mongólia siberiana.
Os mongóis a conhecem como Morini Horobo (“morini” cavalo, e “horobo” vareta). Eles representam esses espíritos com bonecos de cabeça cavalo em uma vareta (semelhante ao brinquedo de crianças) com cinco peças de roupas, cada uma com um sino.
Primeira parte do ritual Oshira Kami
O Oshira Kami é um ritual misterioso, complexo e exaustivo para a itako. Em frente a uma pequena mesa com os bonecos oshira (a boneca feminina na direita e a masculina na esquerda), uma vasilha com água, velas, arroz, mochi e sal. A médium de Aomori se prostra.
Enquanto salpica o local, a médium recita o Hannya Sutra, também conhecido como Prajna-Paramita, Sutra do Coração ou Perfeição da Sabedoria, sutra ligado as escolas de budismo Mahayana (“महायान”, O Grande Veículo) e Theravāda (“थेरवाद”, Doutrina dos Anciãos).

Após o sutra, o rosário irataka sai do pescoso da itako e vai para suas mãos para orar e bater palmas. Em seguida, ainda orando e cantanto, a boneca é segurada na mão direita e o boneco com a mão esquerda para invocar o espírito.
Ao final da invocação, a itako toca sua cabeça com a dos bonecos, susurra algo que somente ela sabe. Por fim, os bonecos são curvados para frente como se fossem cair, e essa ação encerra a primeira parte do ritual.
Parte 2: do inferno aos céus
Após uma pausa para descanso, a itako realiza uma performance chamada Ebisu Mai (Ebisu é um dos Sete Deuses da Fortuna, os Shichifukujin). Nesse momento, a médium começa a fazer uma “busca no inferno” enquanto recita um sutra junto ao rosário irataka.
Os espíritos invocados ficam absortos junto as contas do terço da itako para que sejam enviados de volta ao seu lugar (plano de existência) de pertencimento com auxílio de um cântico originário do shintō.

Nessa segunda parte do ritual Oshima Kami, os espíritos são direcionados para retornarem as montanhas e florestas. Nem sempre o ritual é tão breve quanto o artigo faz parecer, ao final do trabalho, a médium está exaurida.
Embora algumas itako entrem em uma espécie de êxtase com as incorporações dos espíritos invocados, outras não têm esse tipo de comportamento. Tudo dependerá do desenvolvimento mediúnico e suas particularidades, afinal, há muitas formas de mediunidade.
Como funciona o serviço mediúnico das itako
As médiuns cegas de Aomori, Iwate e Miyagi são famosas durante os principais festivais realizados no Monte Osorezan, contudo, a maioria delas, as poucas que ainda existem, também mantém seu ofício nas regiões e imediações de onde vivem.
Quando alguém quer entrar em contato com um ente querido desencarnado e contrata os serviços das médiuns, as itako fazem uma série de perguntas: data do óbito, circunstância e horário da morte, idade e gênero.
Quando o contato é estabelecido, as itako costumam fazer um relato sobre a condição do espírito contactado. A depender das condições, é recomendado que seja feito alguma coisa como um memorial para que espíritos malignos parem de violentar o ente querido.
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A beira do desaparecimento
Com o aumento a da qualidade de vida, oportunidades de trabalho e modernização do Japão, infelizmente as itako estão em risco de desaparecerem do Japão. Atualmente há apenas uma médium completamente cega, Nakamura Take de 90 anos.

Sua sucessora, lamentavelmente chamada de última itako, Matsuda Hiroko, uma mulher na casa dos 50, mas, apesar de ainda ser jovem, Matsuda não aceita discípulas, e talvez, nunca terá uma.
Nos últimos 40 anos quando ainda existiam cerca de 138 itakos da década de 80, boa parte delas não aceitou nenhuma aprendiz, além disso, a procura também diminuiu a medida em que mais possibilidades surgiram para mulheres cegas no Japão.

Contudo, mais do que uma função social para mulheres cegas, as itako são parte de uma riquíssima experiência espiritual, cultural e histórica da sociedade japonesa, além de serem um bálsamo para aqueles que sofrem a dor do luto e da perda.
Mesmo que as itako deixem de existir, sua passagem será contada pela Aomori Prefectural Association for Preserving Itako Traditions e também pelo livro fotográfico intitulado como Talking to the Dead (Falando com os mortos), um registro da e na vida das últimas médiuns cegas do Japão.
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