Joya-no-Kane: as 108 baladas budistas de Ano Novo no Japão

No Brasil, a tradição de origem afro-brasileira manda pular sete ondas na virada do ano. No Japão são 108 batidas para dissolver as 108 paixões humanas que levam ao sofrimento. Saiba mais sobre eles e sobre Joya-no-Kane.

Nos últimos minutos de um ano corrente e o primeiro do novo ano, muitos templos budistas do Japão soam 108 badaladas em seus sinos para dissipar as 108 formas de desejo manifestada em humanos e que levam ao sofrimento. O nome desse ritual é Joya-no-Kane.

O número 108 é muito interessante. Nele estão contidos o vazio representado por zero, o início representado por um e o infinito representado por 8, ao somar os três algarismos (1+0+8), encontra-se 9, ou seja, o fim.

Outra curiosidade sobre o número 108 é que ele também é o resultado da soma 11 x 22 x 33
Outra curiosidade sobre o número 108 é que ele também é o resultado da multiplicação 11 x 22 x 33

Os mais otimistas podem encontrar também o número 7, um dos números mais importantes para a espiritualidade mundial. No contexto do budismo, pode-se associar o número sete como a libertação da Roda do Samsara (seis sãos os reinos do Samsara), o Nirvana.

Essa tradição – Joya-no-Kane – de ano novo é realizado nos principais tempos japoneses como o Senso-ji em Asakusa, Hongwan-ji em Tsukiji, Zenpuju-ji em Azabu-jubam, mas os mais famosos pelo tamanho de seus sinos são o Todai-ji em Nara e o Chion-in em Kyoto.

Joya-no-Kane – 除夜の鐘

Na Joya (véspera de ano novo), os Kane (sino) são dobrados até a travessia dos anos do calendário solar gregoriano.

É uma tradição que remonta a própria fundação da nação japonesa com as revolucionárias políticas desenvolvidas pelo Príncipe Shotoku.

Ao criar a primeira Constituição e fazer do Japão um estado nacional, o Príncipe Shotoku também introduziu o budismo como religião oficial para dar unidade espiritual a sociedade. O Shintō só será reconhecido como religião oficial durante o período Edo.

Tradição milenar no Japão, Joya-no-Kane, é um bom exemplo de herança cultural e a possibilidade de trocas saudáveis entre diferentes povos
Tradição milenar no Japão, Joya-no-Kane, é um bom exemplo de herança cultural e a possibilidade de trocas saudáveis entre diferentes povos

Acredita-se que o ritual importado da China tenha sido criado durante a dinastia Sung (420 – 479). Depois de introduzido no Japão, ganhou mais força com a chegada de monges chineses que fugiram da invasão mongol durante século XIII.

Hoje em dia, é um evento que chega a todos os lares japoneses pelos meios de comunicações tradicionais e alternativos.

Normalmente os templos ficam lotados para o Joya-no-Kane, mas por causa da pandemia de SARS-CoV-2, o número de expectadores foi reduzido.

Como o Joya-no-kane funciona

Dependendo do templo em que o Joya-no-Kane acontece, dobrar 108 vezes o sino pode ser um desafio digno de um time de 17 monges como acontece no Chion-in com seu sino de 70 toneladas.

Por isso, como em qualquer apresentação musical, é preciso ensaio. As palavras entoadas são “Ee hitotsu” (mais uma) seguida de “Sōre” (agora). Por isso, é comum ouvir as badalas dos sinos budistas em várias regiões do Japão antes do dia 31.

A realização do ritual Joya-no-Kane exige ensaio e esforço (físico, mental e espiritual) por parte dos participantes
A realização do ritual Joya-no-Kane exige ensaio e esforço (físico, mental e espiritual) por parte dos participantes

De acordo com a tradição, os sinos devem ser tocados 107 vezes nos últimos minutos do dia 31 de dezembro. Às 00:00 de 1º de janeiro, o último toque é dado e se completam 108 badaladas.

Contudo, nem todos os templos seguem essa regra, alguns fazem todos os toques ainda no dia 31, outros a partir das 00:00 do dia 1º, há também costumes locais que podem diferenciar de outras regiões do país. Mas, em geral, o ritual começa por volta das 23:00.

As 108 paixões humanas que levam ao sofrimento

O objetivo de cada badalada é dissolver uma paixão humana que leva ao sofrimento, um poderoso e nobre ritual de fim de ano. Confira abaixo as 108 paixões descritas pelo budismo:

Abuso, agressão, ambição, raiva, arrogância, baixeza, blasfêmia, cálculo, insensibilidade, caprichos (mudanças inexplicáveis ​​de humor ou comportamento), censura (criticar severamente os outros).

Convencimento, desprezo, crueldade, maldição, aviltamento (de outros), engano, decepção, ilusão, escárnio, desejo de fama, dipsomania (alcoolismo caracterizado por acessos intermitentes de desejo).

Monge budista em oração para espírito faminto conhecido como no Japão como Preta. Os espíritos famintos não o são apenas por coisas, mas, são fundamentalmente famintos pelas paixões
Monge budista em oração para espírito faminto conhecido como no Japão como Preta. Os espíritos famintos não o são apenas por coisas, mas, são fundamentalmente famintos pelas paixões

Discórdia, desrespeito, irreverência (comportamento geral), insatisfação, dogmatismo, domínio, ânsia de poder, afronta (comportamento insolente ou impertinente), egoísmo, inveja, despeito, excessividade (comportamento excessivo).

Falta de fé, falsidade, furtividade, jogos de azar, garrulidade (falar tediosamente sobre assuntos triviais), gula, ganância (em geral), ganância por dinheiro, rancor, dureza de coração, ódio, arrogância, prepotência, hostilidade.

Humilhação, ferir outros, hipocrisia, ignorância, imperiosidade (assumindo poder ou autoridade sem justificativa), impostura (fingir ser outra pessoa para enganar), atrevimento, desatenção.

Indiferença, ingratidão, insaciabilidade, insidiosidade, intolerância, intransigência (não querer ou se recusar a mudar de opinião ou a concordar sobre algo), irresponsabilidade, ciúmes, ser um sabe-tudo.

O Samsara é composto por 6 reinos, todos eles ilusórios: Reino dos Seres Inferno, Reino dos Espíritos Famintos, Reino dos Animais, Reino Humano, Reino dos Semi-Deuses e Reino dos Deuses. Seres inferno e espíritos famintos partilham o sofrimento das 108 paixões e suas derivações.
O Samsara é composto por 6 reinos, todos eles ilusórios: Reino dos Seres Inferno, Reino dos Espíritos Famintos, Reino dos Animais, Reino Humano, Reino dos Semi-Deuses e Reino dos Deuses. Seres inferno e espíritos famintos partilham o sofrimento das 108 paixões e suas derivações.

Falta de compreensão, lascívia, mentira, malignidade, manipulação, masoquismo, impiedade, negatividade, obsessão, obstinação, opressão, ostentação, pessimismo, prejuízo, presunção.

Pretensão, orgulho, prodigalidade (gastar dinheiro ou usar recursos de forma livre e imprudente), briga, revolta, rapacidade (ser agressivamente ganancioso), ridículo, sadismo.

Sarcasmo, sedução (sedução de outros), auto negação, ódio de si mesmo, luxúria sexual, descaramento, mesquinhez, teimosia, tormento, tirania, crueldade, indisciplina, inflexibilidade, vaidade, vingança, violência, temperamento violento, volúpia e ira.

Uma breve nota sobre o Shintō

Um parêntese interessante é que o Shintō era uma prática espiritual muito ligada aos folclores locais e com a chegada do budismo ao Japão, era difícil dizer o que era uma coisa e o que era outra.

O Shintō possui santuários enquanto o budismo possui templos. Outra diferenciação básica é a presença dos Torii, os portais de madeira em frente aos santuários, além disso, normalmente os tempos budistas terminam com em "-ji" como em Todai-ji. Santuários costumam terminar em "jinja", também há outros sufixos
O Shintō possui santuários enquanto o budismo possui templos. Outra diferenciação básica é a presença dos Torii, os portais de madeira em frente aos santuários, além disso, normalmente os tempos budistas terminam com em “-ji” como em Todai-ji. Santuários costumam terminar em “jinja”, também há outros sufixos

As religiões se misturaram por um tempo e criaram um forte sincretismo que beneficiou o Japão cultural e espiritualmente, contudo, apesar das semelhanças, cada religião é única e tem suas características, festivais e rituais próprios.

Os mais importantes sinos do Japão

Considerado um dos três templos mais importantes para a celebração do Joya-no-Kane, o Chion-in tem um dos sinos mais antigos do Japão.

Foi forjado em 1636, pesa 70 toneladas e tem 3,3 metros de altura e 2,8 metros de diâmetro

Em 2021, o evento no templo (Chion-in) foi transmitido no YouTube. Para acompanhar como foi a virada, clique no link abaixo (a primeira badalada começa aos 28 minutos e 20 segundos, contudo, há uma bela cerimônia de orações antes que vale a pena ser vista).

No templo Houku-ji, também em Kyoto, o sino foi forjado em 1614, pesa 82,7 toneladas e tem 4,2 metros de altura.

Todai-ji, no entanto, tem o sino mais velho, foi forjado em 751, pesa 26,36 toneladas, tem 3,85 metros de altura e 2,7 metros de diâmetro.

Cada templo tem suas belezas e não há um que seja melhor ou pior, há diferentes tons e atmosferas que atraem mais a uns do que a outros.

Não restam dúvidas que o Joya-no-Kane é um evento a ser vivenciado pessoalmente e sentir toda a energia que os sinos tem a passar.

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