O Japão é um pequeno país insular com espaço territorial, sujeito a toda sorte de adversidade climática e geológica (tufões, terremotos, tsunamis, vulcões) e com uma população de aproximadamente 125,7 milhões de pessoas.
E ainda assim, surpreendentemente, essa pequena nação insular da Ásia Oriental é a terceira maior economia do mundo, atrás de China e EUA, respectivamente. Como é possível? A resposta é óbvia: Educação.

E essa experiência histórica da civilização japonesa tem uma característica muito particular: ela foi a primeira a tentar universalizar a educação com as chamadas Terakoya (“寺子屋”, templos-escolas) espalhadas por todo o país.
A ideia era alfabetizar e dar o mínimo de instruções de álgebra para os plebeus e classes subalternas do período Edo (1603 – 1868) em templos budistas para que as pessoas se tornassem mais produtivas dentro da sociedade.
Mas como tudo isso aconteceu? Continue o artigo e compreenda as causas e necessidades da sociedade durante um período de transição, das guerras intermináveis a dois séculos e meio de estabilidade, prosperidade e relativa paz.
Terakoya: do caos Sengoku à ordem Edo
Desde o começo do período Sengoku (1467 – 1615) até a ‘Pax’Tokugawa, reinava o caos no Japão, vilarejos saqueados, massacres, escravização era o cotidiano das pessoas comuns no país, portanto, a ideia de terakoya não era sequer concebível.
Com essas guerras intermináveis, a população também sofria com a fome e doenças. Mas após do clã Toyotomi no Cerco de Osaka, Ieyasu Tokugawa conseguiu se impor como shogun e colocou uma pedra no passado violento do Japão.

Ieyasu Tokugawa governou com mão de ferro e soube como poucas personalidades na história mundial em como controlar os aliados e os oponentes de forma incontestável.
Apesar da militarização da administração pública, as pessoas passaram a baixar a guarda e confiar no novo governante. A violência diária deu espaço a uma paz até entediante.

A classe guerreira, os bushi, em vez de empunhar espadas, agora empunhavam pinceis, tinteiros e papeis para a burocracia e administração do estado afim de assegurar o desenvolvimento e a saúde econômica do shogunato.
Foi o florescimento do estado de direito no Japão, isto é, as leis e o direito como principal instrumento do poder de um estado que detém o monopólio da violência (a proibição da posse e do porte de armas no Japão começa em 1615), mas não confundir com a democracia liberal do século XXI.

A universalização da educação através do terakoyo levou a sociedade japonesa em seu apogeu nas artes, filosofia, religião, literatura, música, teatro, poesia, arquitetura comércio, agricultura e até mesmo em serviços.
As reformas políticas e sociais de Tokugawa
As terakoya já existiam no Japão desde o final do período Heian (794 – 1185) e foram reintroduzidas na sociedade, com escolas particulares acessíveis voltadas para a população comum, ou seja, mesmo uma pessoa pobre podia pagar pela educação de um filho.
Embora o governo não despendesse nenhum gasto, investimento ou tutela sobre essas escolas improvisadas, Ieasu Tokugawa ambicionava que as pessoas se tornassem mais produtivas para a sociedade através da educação.

Entre outras coisas, educar o maior número de pessoas era indispensável para o shogun se comunicar diretamente com as a sociedade japonesa através de decretos e comunicados, e com isso, manter-se presente no dia a dia.
Ao mesmo tempo, o florescimento do direito criou novas formas de contratos sociais como arrendamento de terras, compra e venda de títulos, por exemplo, passassem pela administração pública do estado.

Como tudo passava por essa burocracia, ter alguém com instrução para lidar com as documentações oficiais, impostos (já regulamentados por lei) e as operações financeiras nos negócios da família se tornou uma necessidade.
E para dar cabo as novas demandas da sociedade, foi necessário padronizar a escrita em todo o território japonês. O estilo caligráfico oie-ryū foi imposto pelo shogunato e adotado em todas as províncias do país.
Como o terakoya funcionou
De acordo com o professor emérito do National Museum of Japanese History and the Graduate University for Advanced Studie, especialistas nos aspectos sociais do período Edo como educação popular, cultura, apostas, estilo de vida e etnografia, Takahashi Satoshi, existiram cerca de 60 mil escolas populares terakoya no Japão.
Por não ser parte da burocracia, não existiu um curriculum padronizado ou técnicas da gestão pública dos dias atuais. Contudo, isso não significa que a educação fosse necessariamente rasa ou que não houvesse aspectos positivos.

As aulas eram ministradas por sacerdotes ou pessoas já instruídas em salas improvisadas nos templos. Em geral, as terakoya funcionavam com mais de um educador e os estudantes eram tratados de forma assimétrica.
A ideia não era apenas dar os conhecimentos gerais, era entender as aptidões, tendências e limitações de cada indivíduo, e isso atendia as expectativas do shogun para que as pessoas se tornassem mais produtivas para a sociedade.
A disciplina dos discípulos do terakoya
Se você, caro leitor, imagina que seus pais foram rigorosos com seus estudos, tente imaginar o que era ser um filho de agricultores, artesãos ou comerciantes pobres que tinham como missão manter os negócios da família.
O professor Takahashi Satoshi afirma, no entanto, que na medida em que as terakoya se expandiam pelo Japão, o conhecimento e o saber se tornaram uma paixão para os cidadãos comuns.

Cada região, ou melhor, cada escola possuía suas próprias regras, horários e obrigações entre as partes. Satoshi utiliza o exemplo de uma terakoya que atendia a comunidade da vila Haranogō, antiga província de Kōzuke (atual prefeitura de Gunma).
Na metade do século XIX, o curriculum escolar contava com nagashiraji-zukushi, um estudo da linhagem, histórias e feitos dos Genpei-tōkitsu, isto é, os clãs Minamoto (Gen), Taira (Pei), Fujiwara (To) e Tachibana (Kitsu), as famílias mais importantes do final da era Heian.

Estudavam as vilas da região, os distritos da província de Kōzuke, leitura, escrita dos nomes comuns aos chefes de vilas, distritos e das províncias de todo o Japão e conhecimentos geográficos.
Níveis intermediário e avançado
Todas as disciplinas citadas acima faziam parte do curriculum da educação básica. No nível intermediário, os estudantes eram submetidos a textos explicativos sobre os eventos que eram celebrados pela sociedade durante o ano.
Também aprendiam o Goningumi Jōmoku, as leis bakufu que proibia, entre outras coisas, a violência e as apostas, um texto destinado aos Goningumi, grupo de cinco famílias locais que eram responsáveis pelos serviços públicos como coleta de impostos e segurança pública.

Já no nível avançado, os estudantes eram iniciados no Sewa Senjimon, a chamada ‘Caligrafia Exemplar em Mil Caracteres’, noções de finanças (acordos de empréstimos), contratos de compra e venda de terra e documentação de trânsito pelas províncias.
Há documentos em abundância que confirmam a complexidade e diversidade do ensino aplicado nas escolas improvisadas nos templos, são mais de 7 mil ōraimono, cadernos de estudantes de terakoya. E o mais interessante: cerca de mil pertenceram a mulheres.

A diferença entre homens e mulheres ‘escolarizados’ era grande, contudo, o ōraimono das mulheres demonstra que todos eram potencialmente bem vindos e que, ainda que de forma indireta, houve uma real tentativa de universalização da educação no Japão.
Regras de conduta das terakoya
Para além das obrigações educacionais, os discípulos das escolas do Japão feudal também deviam seguir rígidas regras de conduta na vida cotidiana e social.
Na vila de Yoshikubo (atual Oyama), antiga província de Suruga (atual prefeitura de Shizuoka), por exemplo, Yuyama Bun’emon, professor de uma terakoya local declarou em um documento batizado de Yoryoku Gakumon quais eram os objetivos a serem alcançados por seus alunos.

“Após cumprir todos os seus deveres morais, se ainda lhe restar forças, você deverá utilizá-la para buscar mais conhecimento.”, abertura do Yoryoku Gakumon, uma instrução presente na obra Analectos de Confúcio (Diálogos de Confúcio).
As instruções de Yuyama Bun’emon publicadas em 1844, contudo, não era limitada aos estudantes, eram também estimuladas a compartilhar esses valores com colegas mais novos e com os pais ou responsáveis. Confira algumas delas:
- Ao chegar na escola, sentar-se no estilo seiza com as mãos rentes ao chão, abaixe sua cabeça e cumprimente seu mestre silenciosamente antes de tomar seu lugar;
- Ao receber convidados, traga um cinzeiro, sirva chá e curvem-se juntos para saudá-los;
- Na presença de um convidado, não faça sua leitura em voz alta;
- O uso dos banheiros deve ser feito em turnos e não em grupo;
- Seus amigos da escola devem ser tratados como seus irmãos e irmãs, se deem bem com eles, seja polido uns com os outros e mantenham-se próximos para o resto de suas vidas;
- Quaisquer problemas que você tiver com outro colega é de sua responsabilidade, seus pais não devem ser envolvidos nessas questões;
- Se você não conseguir dizer adeus para seu mestre ao ir embora, se despeça de seus colegas de classe, ao chegar em casa para comer, olhe para sua mãe e seu pai e agradeça a eles antes de comer;
- Não acorde tarde pela manhã, levante e lave seu rosto com água, reverencie o Sol e preste homenagens a seus ancestrais;
- Leia em voz alta todas essas regras e não fracasse em manter um comportamento adequado para o resto de sua vida.
A relação ideal entre mestre e discípulo era o Sanze no Chigiri, um elo que deveria durar até três gerações. A relação entre os colegas de classe também deveria ser honrada por todos até o fim da vida.
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Wakamonogumi e Musumegumi
Ao longo dos anos, as terakoyas ultrapassaram as fronteiras dos templos e santuários onde eram ministradas aulas com grupos de estudantes que carregavam a responsabilidade da disseminação do conhecimento para as pessoas das vilas e vilarejos.
Jovens a partir dos 15 anos (maioridade durante o período Edo) e de todas as castas tinha a possibilidade de ingressar nesses grupos de ensino: Wakamonogumi, os grupos compostos apenas por homens, e Musumegumi, grupos formados exclusivamente por mulheres.

Infelizmente há poucos registros históricos acerca das atividades realizadas por Musumegumi. Os documentos remanescentes apontam, no entanto, as pessoas que integravam os grupos de Wakamonogumi e Musumegumi (com menor precisão) tinham tarefas claras.
Os mais velhos do grupo tinham a obrigação de treinar os mais novos com instruções e demonstrações, ser um exemplo no comportamento social do dia a dia, por exemplo. E tudo de forma oral, toda a cultura trabalhada nestes grupos não se baseava na escrita.
Terakoya nos dias de hoje
Atualmente, existem ONGs e outras instituições normalmente vinculadas a área da educação – com o nome de terakoya, contudo, seus métodos não necessariamente se espelham no sistema de educação popular do bakufu.
O professor Takahashi Satoshi sustenta que é preciso resgatar no atual sistema de ensino a ideia de que uma estudante pode e deve se tornar um membro mais ativo e produtivo para sua sociedade, e ele precisa acreditar nisso.

Valores como a preservação das amizades de escola para toda a vida em redes de acolhimento e pertencimento, e não superficialmente como mais um seguido ou seguidor nas redes sociais, respeito aos pais e família, e o respeito aos ancestrais.
Esses valores, vínculos e elos são essenciais para a saúde mental e espiritual de uma sociedade cada vez mais monoparentais e/ou composta por apenas dois indivíduos, reclusa (hikikomori) e altamente hostil contra colegas de classe (bullying).

Como afirmam os grandes pensadores brasileiros Katiúscia Ribeiro, filósofa, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista em filosofia africana, e Ailton Krenak, ambientalista, líder indígena, filósofo, poeta e escritor: “O futuro é ancestral”.
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