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Terakoya: a universalização da educação no Japão na era Edo

A educação popular no Japão surge durante o período Heian, mas foi sob a égide do clã Tokugawa que as terakoya prosperam no país. Saiba mais

O Japão é um pequeno país insular com espaço territorial, sujeito a toda sorte de adversidade climática e geológica (tufões, terremotos, tsunamis, vulcões) e com uma população de aproximadamente 125,7 milhões de pessoas.

E ainda assim, surpreendentemente, essa pequena nação insular da Ásia Oriental é a terceira maior economia do mundo, atrás de China e EUA, respectivamente. Como é possível? A resposta é óbvia: Educação.

Em 1871, nasceu o Ministério da Educação do Japão. Com o nascimento da pasta, as terakoyas foram nacionalizadas e transformadas em escolas primárias ante a prioridade educacional do Império japonês para sua industrialização
Em 1871, nasceu o Ministério da Educação do Japão. Com o nascimento da pasta, as terakoya foram nacionalizadas e transformadas em escolas primárias ante a prioridade educacional do Império japonês para dar sequência a seu processo de modernização e industrialização (baseado na experiência das grandes potências ocidentais)

E essa experiência histórica da civilização japonesa tem uma característica muito particular: ela foi a primeira a tentar universalizar a educação com as chamadas Terakoya (“寺子屋”, templos-escolas) espalhadas por todo o país.

A ideia era alfabetizar e dar o mínimo de instruções de álgebra para os plebeus e classes subalternas do período Edo (1603 – 1868) em templos budistas para que as pessoas se tornassem mais produtivas dentro da sociedade.

  • Registro fotográfico da escola Honami Shōgakkō jidō no jishū, prefeitura de Fukuoka final do período Meiji
  • Registro fotográfico de aula de educação moral na Kijō Elementary School, cidade de Kariya, prefeitura de Aichi

Mas como tudo isso aconteceu? Continue o artigo e compreenda as causas e necessidades da sociedade durante um período de transição, das guerras intermináveis a dois séculos e meio de estabilidade, prosperidade e relativa paz.

Terakoya: do caos Sengoku à ordem Edo

Desde o começo do período Sengoku (1467 – 1615) até a ‘Pax’Tokugawa, reinava o caos no Japão, vilarejos saqueados, massacres, escravização era o cotidiano das pessoas comuns no país, portanto, a ideia de terakoya não era sequer concebível.

Com essas guerras intermináveis, a população também sofria com a fome e doenças. Mas após do clã Toyotomi no Cerco de Osaka, Ieyasu Tokugawa conseguiu se impor como shogun e colocou uma pedra no passado violento do Japão.

O Cerco de Osaka, de novembro de 1614 a junho de 1615, evento que legitimou o poder do shogun Ieyasu Tokugawa com a vitória sobre o clã Toyotomi
O Cerco de Osaka, de novembro de 1614 a junho de 1615, evento que legitimou o poder do shogun Ieyasu Tokugawa com a vitória sobre o clã Toyotomi

Ieyasu Tokugawa governou com mão de ferro e soube como poucas personalidades na história mundial em como controlar os aliados e os oponentes de forma incontestável.

Apesar da militarização da administração pública, as pessoas passaram a baixar a guarda e confiar no novo governante. A violência diária deu espaço a uma paz até entediante.

As leis substituíram as espadas e os samurais tornaram-se funcionários públicos que cuidavam da administração pública do shogunato
As leis substituíram as espadas e os samurais tornaram-se funcionários públicos que cuidavam da administração pública do shogunato

A classe guerreira, os bushi, em vez de empunhar espadas, agora empunhavam pinceis, tinteiros e papeis para a burocracia e administração do estado afim de assegurar o desenvolvimento e a saúde econômica do shogunato.

Foi o florescimento do estado de direito no Japão, isto é, as leis e o direito como principal instrumento do poder de um estado que detém o monopólio da violência (a proibição da posse e do porte de armas no Japão começa em 1615), mas não confundir com a democracia liberal do século XXI.

A paz conquistada e mantida por Ieyasu Tokugawa abriu e espaço para o desenvolvimento das artes, cultura, economia e desenvolvimento
A paz conquistada e mantida por Ieyasu Tokugawa abriu e espaço para o desenvolvimento das artes, cultura, economia e desenvolvimento

A universalização da educação através do terakoyo levou a sociedade japonesa em seu apogeu nas artes, filosofia, religião, literatura, música, teatro, poesia, arquitetura comércio, agricultura e até mesmo em serviços.

As reformas políticas e sociais de Tokugawa

As terakoya já existiam no Japão desde o final do período Heian (794 – 1185) e foram reintroduzidas na sociedade, com escolas particulares acessíveis voltadas para a população comum, ou seja, mesmo uma pessoa pobre podia pagar pela educação de um filho.

Embora o governo não despendesse nenhum gasto, investimento ou tutela sobre essas escolas improvisadas, Ieasu Tokugawa ambicionava que as pessoas se tornassem mais produtivas para a sociedade através da educação.

As expectativas da manutenção, progressão e prosperidade dos negócios da família pesam sobre os ombros dos estudantes das terakoya
As expectativas da manutenção, progressão e prosperidade dos negócios da família pesam sobre os ombros dos estudantes das terakoya

Entre outras coisas, educar o maior número de pessoas era indispensável para o shogun se comunicar diretamente com as a sociedade japonesa através de decretos e comunicados, e com isso, manter-se presente no dia a dia.

Ao mesmo tempo, o florescimento do direito criou novas formas de contratos sociais como arrendamento de terras, compra e venda de títulos, por exemplo, passassem pela administração pública do estado.

A educação nas terakoya eram autônomas, o ensino variava de região para região e o governo não tutelou as mais de 60 mil escolas espalhadas pelo país
A educação nas terakoya eram autônomas, o ensino variava de região para região e o governo não tutelou as mais de 60 mil escolas espalhadas pelo país

Como tudo passava por essa burocracia, ter alguém com instrução para lidar com as documentações oficiais, impostos (já regulamentados por lei) e as operações financeiras nos negócios da família se tornou uma necessidade.

E para dar cabo as novas demandas da sociedade, foi necessário padronizar a escrita em todo o território japonês. O estilo caligráfico oie-ryū foi imposto pelo shogunato e adotado em todas as províncias do país.

Como o terakoya funcionou

De acordo com o professor emérito do National Museum of Japanese History and the Graduate University for Advanced Studie, especialistas nos aspectos sociais do período Edo como educação popular, cultura, apostas, estilo de vida e etnografia, Takahashi Satoshi, existiram cerca de 60 mil escolas populares terakoya no Japão.

Por não ser parte da burocracia, não existiu um curriculum padronizado ou técnicas da gestão pública dos dias atuais. Contudo, isso não significa que a educação fosse necessariamente rasa ou que não houvesse aspectos positivos.

Réplica de uma sala de aula terakoya, modelo não muito diferente do atual sistema de ensino em todo o mundo
Réplica de uma sala de aula terakoya, modelo não muito diferente do atual sistema de ensino em todo o mundo

As aulas eram ministradas por sacerdotes ou pessoas já instruídas em salas improvisadas nos templos. Em geral, as terakoya funcionavam com mais de um educador e os estudantes eram tratados de forma assimétrica.

A ideia não era apenas dar os conhecimentos gerais, era entender as aptidões, tendências e limitações de cada indivíduo, e isso atendia as expectativas do shogun para que as pessoas se tornassem mais produtivas para a sociedade.

A disciplina dos discípulos do terakoya

Se você, caro leitor, imagina que seus pais foram rigorosos com seus estudos, tente imaginar o que era ser um filho de agricultores, artesãos ou comerciantes pobres que tinham como missão manter os negócios da família.

O professor Takahashi Satoshi afirma, no entanto, que na medida em que as terakoya se expandiam pelo Japão, o conhecimento e o saber se tornaram uma paixão para os cidadãos comuns.

O autoaperfeiçoamento, o Kaizen, é um princípio estruturante das sociedades confucionistas
O autoaperfeiçoamento, o Kaizen, é um princípio estruturante das sociedades confucionistas

Cada região, ou melhor, cada escola possuía suas próprias regras, horários e obrigações entre as partes. Satoshi utiliza o exemplo de uma terakoya que atendia a comunidade da vila Haranogō, antiga província de Kōzuke (atual prefeitura de Gunma).

Na metade do século XIX, o curriculum escolar contava com nagashiraji-zukushi, um estudo da linhagem, histórias e feitos dos Genpei-tōkitsu, isto é, os clãs Minamoto (Gen), Taira (Pei), Fujiwara (To) e Tachibana (Kitsu), as famílias mais importantes do final da era Heian.

Genpei-tōkitsu, estudo das principais famílias do final do período Heian, base curricular de uma terakoya da vila Haranogō, antiga província de Kōzuke (atual prefeitura de Gunma)
Genpei-tōkitsu, estudo das principais famílias do final do período Heian, base curricular de uma terakoya da vila Haranogō, antiga província de Kōzuke (atual prefeitura de Gunma)

Estudavam as vilas da região, os distritos da província de Kōzuke, leitura, escrita dos nomes comuns aos chefes de vilas, distritos e das províncias de todo o Japão e conhecimentos geográficos.

Níveis intermediário e avançado

Todas as disciplinas citadas acima faziam parte do curriculum da educação básica. No nível intermediário, os estudantes eram submetidos a textos explicativos sobre os eventos que eram celebrados pela sociedade durante o ano.

Também aprendiam o Goningumi Jōmoku, as leis bakufu que proibia, entre outras coisas, a violência e as apostas, um texto destinado aos Goningumi, grupo de cinco famílias locais que eram responsáveis pelos serviços públicos como coleta de impostos e segurança pública.

Entre os temas aprendidos nos níveis intermediários e avançados nas terakoyas estavam o Goningumi Jōmoku, Sewa Senjimon (Caligrafia Exemplar em Mil Caracteres), noções de finanças (acordos de empréstimos), contratos de compra e venda de terra e documentação de trânsito pelas províncias
Entre os temas aprendidos nos níveis intermediários e avançados nas terakoyas estavam o Goningumi Jōmoku, Sewa Senjimon (Caligrafia Exemplar em Mil Caracteres), noções de finanças (acordos de empréstimos), contratos de compra e venda de terra e documentação de trânsito pelas províncias

Já no nível avançado, os estudantes eram iniciados no Sewa Senjimon, a chamada ‘Caligrafia Exemplar em Mil Caracteres’, noções de finanças (acordos de empréstimos), contratos de compra e venda de terra e documentação de trânsito pelas províncias.

Há documentos em abundância que confirmam a complexidade e diversidade do ensino aplicado nas escolas improvisadas nos templos, são mais de 7 mil ōraimono, cadernos de estudantes de terakoya. E o mais interessante: cerca de mil pertenceram a mulheres.

Entre os mais de 7 mil ōraimono, cadernos de estudantes de terakoya preservados no Japão, cerca de mil pertenceram a mulheres
Entre os mais de 7 mil ōraimono, cadernos de estudantes de terakoya preservados no Japão, cerca de mil pertenceram a mulheres

A diferença entre homens e mulheres ‘escolarizados’ era grande, contudo, o ōraimono das mulheres demonstra que todos eram potencialmente bem vindos e que, ainda que de forma indireta, houve uma real tentativa de universalização da educação no Japão.

Regras de conduta das terakoya

Para além das obrigações educacionais, os discípulos das escolas do Japão feudal também deviam seguir rígidas regras de conduta na vida cotidiana e social.

Na vila de Yoshikubo (atual Oyama), antiga província de Suruga (atual prefeitura de Shizuoka), por exemplo, Yuyama Bun’emon, professor de uma terakoya local declarou em um documento batizado de Yoryoku Gakumon quais eram os objetivos a serem alcançados por seus alunos.

A disciplina o qual os estudantes eram submetidos nas terakoya ultrapassavam as salas de aula, obrigações morais com os colegas de classe deveriam ser honradas até o fim da vida, por exemplo
A disciplina o qual os estudantes eram submetidos nas terakoya ultrapassavam as salas de aula, obrigações morais com os colegas de classe deveriam ser honradas até o fim da vida, por exemplo

“Após cumprir todos os seus deveres morais, se ainda lhe restar forças, você deverá utilizá-la para buscar mais conhecimento.”, abertura do Yoryoku Gakumon, uma instrução presente na obra Analectos de Confúcio (Diálogos de Confúcio).

As instruções de Yuyama Bun’emon publicadas em 1844, contudo, não era limitada aos estudantes, eram também estimuladas a compartilhar esses valores com colegas mais novos e com os pais ou responsáveis. Confira algumas delas:

  • Ao chegar na escola, sentar-se no estilo seiza com as mãos rentes ao chão, abaixe sua cabeça e cumprimente seu mestre silenciosamente antes de tomar seu lugar;
  • Ao receber convidados, traga um cinzeiro, sirva chá e curvem-se juntos para saudá-los;
  • Na presença de um convidado, não faça sua leitura em voz alta;
  • O uso dos banheiros deve ser feito em turnos e não em grupo;
  • Seus amigos da escola devem ser tratados como seus irmãos e irmãs, se deem bem com eles, seja polido uns com os outros e mantenham-se próximos para o resto de suas vidas;
  • Quaisquer problemas que você tiver com outro colega é de sua responsabilidade, seus pais não devem ser envolvidos nessas questões;
  • Se você não conseguir dizer adeus para seu mestre ao ir embora, se despeça de seus colegas de classe, ao chegar em casa para comer, olhe para sua mãe e seu pai e agradeça a eles antes de comer;
  • Não acorde tarde pela manhã, levante e lave seu rosto com água, reverencie o Sol e preste homenagens a seus ancestrais;
  • Leia em voz alta todas essas regras e não fracasse em manter um comportamento adequado para o resto de sua vida.

A relação ideal entre mestre e discípulo era o Sanze no Chigiri, um elo que deveria durar até três gerações. A relação entre os colegas de classe também deveria ser honrada por todos até o fim da vida.

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Wakamonogumi e Musumegumi

Ao longo dos anos, as terakoyas ultrapassaram as fronteiras dos templos e santuários onde eram ministradas aulas com grupos de estudantes que carregavam a responsabilidade da disseminação do conhecimento para as pessoas das vilas e vilarejos.

Jovens a partir dos 15 anos (maioridade durante o período Edo) e de todas as castas tinha a possibilidade de ingressar nesses grupos de ensino: Wakamonogumi, os grupos compostos apenas por homens, e Musumegumi, grupos formados exclusivamente por mulheres.

Wakamonogumi e Musumegumi eram grupos formados por estudantes de terakoya com o objetivo de transmitir oralmente o conhecimento, dar o exemplo aos mais novos e aprimora-se nos estudos. Wakamonogumi eram os grupos formados exclusivamente por homens, e o Musumegumi eram os grupos formados exclusivamente por mulheres
Wakamonogumi e Musumegumi eram grupos formados por estudantes de terakoya com o objetivo de transmitir oralmente o conhecimento, dar o exemplo aos mais novos e aprimora-se nos estudos. Wakamonogumi eram os grupos formados exclusivamente por homens, e o Musumegumi eram os grupos formados exclusivamente por mulheres

Infelizmente há poucos registros históricos acerca das atividades realizadas por Musumegumi. Os documentos remanescentes apontam, no entanto, as pessoas que integravam os grupos de Wakamonogumi e Musumegumi (com menor precisão) tinham tarefas claras.

Os mais velhos do grupo tinham a obrigação de treinar os mais novos com instruções e demonstrações, ser um exemplo no comportamento social do dia a dia, por exemplo. E tudo de forma oral, toda a cultura trabalhada nestes grupos não se baseava na escrita.

Terakoya nos dias de hoje

Atualmente, existem ONGs e outras instituições normalmente vinculadas a área da educação – com o nome de terakoya, contudo, seus métodos não necessariamente se espelham no sistema de educação popular do bakufu.

O professor Takahashi Satoshi sustenta que é preciso resgatar no atual sistema de ensino a ideia de que uma estudante pode e deve se tornar um membro mais ativo e produtivo para sua sociedade, e ele precisa acreditar nisso.

Kinjirō Ninomiya, mais conhecido como Ninomiya Sontoku é uma das personalidades mais importantes do Japão, foi uma das mentes responsaveis por criar o capitalismo japonês. Líder agrário, filósofo, moralista e economista, Sontoku foi filho de uma família de agricultores pobres e estudante da terakoya.
Kinjirō Ninomiya, mais conhecido como Ninomiya Sontoku é uma das personalidades mais importantes do Japão, uma das mentes responsáveis pelo desenvolvimento do capitalismo japonês. Líder agrário, filósofo, moralista e economista, Sontoku foi filho de uma família de agricultores pobres e estudante da terakoya.

Valores como a preservação das amizades de escola para toda a vida em redes de acolhimento e pertencimento, e não superficialmente como mais um seguido ou seguidor nas redes sociais, respeito aos pais e família, e o respeito aos ancestrais.

Esses valores, vínculos e elos são essenciais para a saúde mental e espiritual de uma sociedade cada vez mais monoparentais e/ou composta por apenas dois indivíduos, reclusa (hikikomori) e altamente hostil contra colegas de classe (bullying).

Para o professor Takahashi Satoshi, resgatar valores da experiência educacional do terakoya forneceria ferramentas importantes para combater o bullying, autoisolamento (hikikomori) e a distância emocional, psicológica e afetiva das famílias japonesas
Para o professor Takahashi Satoshi, resgatar valores da experiência educacional do terakoya forneceria ferramentas importantes para combater o bullying, autoisolamento (hikikomori) e a distância emocional, psicológica e afetiva das famílias japonesas

Como afirmam os grandes pensadores brasileiros Katiúscia Ribeiro, filósofa, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista em filosofia africana, e Ailton Krenak, ambientalista, líder indígena, filósofo, poeta e escritor: “O futuro é ancestral”.

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