Kachi-kachi Yama: a lenda da montanha crepitante

Kachi-kachi Yama é um folclore japonês famoso desde a era Edo. Com uma temática incomum, têm diversas versões para diferentes públicos. Confira

Kachi-kachi Yama (かちかち山) é um folclore japonês difícil de encontrar sua origem na linha do tempo. Foi traduzida para o inglês como The Farmer and the Badger ou The Farmer and the Tanuki. No Brasil, no entanto, é mais conhecida como A Lenda da Montanha Crepitante.

Isso porque a palavra Yama significa montanha e Kachi-kachi é uma palavra originária da própria onomatopeia utilizada para se referir ao som crepitante do fogo.

A depender do tempo e da região, a lenda possui diferentes personagens e elementos, mas a estrutura se mantém.

Kibyōshi é traduzido como livro de capa amarela; Suas primeiras edições datam de meados da metade do período Edo, eram dedicados ao público adulto, continham, entre outras coisas, críticas sociais e políticas. Muitos exemplares foram censurados por seu conteúdo, por essa razão, a maioria dos autores utilizavam pseudônimos para não sofrerem represálias das autoridades. O exemplar da imagem é do ano 1780, autoria de Santō Kyōden
Kibyōshi é traduzido como livro de capa amarela. Suas primeiras edições datam de meados da metade do período Edo, eram dedicados ao público adulto, continham, entre outras coisas, críticas sociais e políticas. Muitos exemplares foram censurados por seu conteúdo, por essa razão, a maioria dos autores utilizavam pseudônimos para não sofrerem represálias das autoridades. O exemplar da imagem é do ano 1780, autoria de Santō Kyōden

Em 1777, por exemplo, Hirasawa Tsunetomi (1735 – 1813) que utilizava o pseudônimo de Hoseido Kisanji, publicou o Oyakata Kiuteya Haratsuzumi (親敵討腹鞁), uma história semelhante em alguns aspectos, mas muito mais violenta e voltada ao público adulto em uma edição de Kibyōshi (livro animado).

A versão de Kachi-kachi Yama que você acompanhará na íntegra a seguir foi traduzida do japonês para o inglês por Yei Theodora Ozaki, e do inglês para o português pelo Portal Japão Real. Não deixe de conferir outros contos, folclores e artigos relacionados.

Yei Theodora Ozaki (1870 - 1932) foi a primogênita do Barão Saburo Ozaki, um nobre japonês que estudava na Inglaterra, e de Bathia Catherine Morrison. Yei, uma nipo-britânica, cresceu tanto no Japão quanto na Inglaterra, durante toda sua vida viajou entre Japão, Europa e EUA. Theodora Ozaki foi responsável pela tradução de diversos contos tradicionais japoneses, em especial os conto de fadas, para o público ocidental. Fotografia provavelmente tirada em 1891, época que Yei trabalhou na embaixada Britânica em Tokyo
Yei Theodora Ozaki (1870 – 1932) foi a primogênita do Barão Saburo Ozaki, um nobre japonês que estudava na Inglaterra, e de Bathia Catherine Morrison. Yei, uma nipo-britânica, cresceu tanto no Japão quanto na Inglaterra, durante toda sua vida viajou entre Japão, Europa e EUA. Theodora Ozaki foi responsável pela tradução de diversos contos tradicionais japoneses, em especial os conto de fadas, para o público ocidental. Fotografia provavelmente tirada em 1891, época que Yei trabalhou na embaixada Britânica em Tokyo

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Kachi-kachi Yama

Há muitos anos atrás, um velho fazendeiro e sua esposa foram viver nas montanhas, um lugar distante de qualquer outra cidade.

Vizinho terrível, um tanuki

O único vizinho que tinham era um terrível Tanuki (cão-guaxinim japonês, ou texugo). Esse Tanuki vinha todas as noites e corria por todo o campo dos fazendeiros destruindo toda a plantação de arroz e vegetais que o fazendeiro tão cuidadosamente cultivava por tanto tempo.

O estrago causado Tanuki só aumentava e os danos de suas travessuras eram visíveis por toda a fazenda, e aquilo não mais poderia ser tolerado pelo bom fazendeiro, que havia decidido dar um fim naquela história.

O velho fazendeiro aguardou dia após dia e noite após noite com um porrete em mãos esperando pegar o Tanuki, mas seus esforços foram em vão. Resolveu então colocar armadilhas para o malévolo animal.

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Os problemas e a paciência do fazendeiro foram recompensados. Um belo dia, em meio a suas rondas pela fazenda, encontrou o Tanuki em um buraco que tinha cavado.

O velho fazendeiro se deleitou ao capturar seu inimigo, o amarrou com firmeza em uma corda e o carregou para casa. Ao chegar, o velho fazendeiro disse a sua esposa:

                – Finalmente peguei aquele Tanuki malvado. Mantenha os olhos nele enquanto saio para trabalhar. Não o deixe escapar, a noite pretendo fazer uma sopa de texugo!

Em seguida, amarrou o texugo nas vigas do armazém da fazenda e saiu para trabalhar no campo.

O Tanuki estava em maus lençóis e a ideia de tornar-se a refeição de seu capturador naquela noite não lhe agradava em absoluto, pensou e pensou por um bom tempo tentando criar algum plano que permitisse sua fuga.

Era muito difícil, no entanto, pensar em posição tão incômoda como a que se encontrara, afinal, fora amarrado de cabeça para baixo.

Próximo a ele, na entrada do armazém, viu a esposa do velho fazendeiro preparando mochi em meio ao agradável brilho do Sol, grama verde e árvores.

Ela aparentava cansaço e idade, sua pele tinha muitas rugas e era marrom como couro, e parava de tempo em tempo para enxugar o suor que corria de seu rosto.

                – Minha cara, a senhora deve estar muito cansada fazendo esse trabalho tão duro em idade tão avançada. Que tal permitir que eu realize esse trabalho para você? Meus braços são bem fortes e a senhora pode descansar um bocado! – disse o Tanuki.

                – Agradeço por sua gentileza, – respondeu a mulher – mas não posso permitir que você faça meu trabalho por que não devo desamarrar você, pois você poderá escapar se eu permitir, então meu marido ficará furioso quando voltar e perceber que você partiu.

O Tanuki, que é um dos animais mais astutos e ardilosos, retrucou, mas desta vez, com uma voz triste e doce:

                – Que grosseria da sua parte. Se você puder me desatar, prometo que não tentarei fugir. Se você estiver com medo de seu marido, você pode me amarrar novamente antes dele retornar, até lá já terei terminado de preparar o mochi. Estou cansado de machucado em ficar preso dessa forma. Ficarei muito grato a você se puder apenas me descer por alguns minutos!

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A velha mulher tinha uma boa e natureza simples, por isso era incapaz de pensar mal de qualquer um, muito menos que o Tanuki estaria manipulando-a para escapar.

A idosa bondosa acredita no tanuki

Ela também sentiu dó do animal quando olhou para ele, era uma situação lamentável, estava pendurado de cabeça para baixo, preso pelas próprias patas que estavam amarradas juntas, e estava tão apertado que a corda e os nós já estavam cortando sua pele. Em sua bondade, e acreditando na promessa do Tanuki, a mulher o desceu e o desamarrou.

A velha mulher entregou o pilão de madeira e disse para ele trabalhar um pouco enquanto ela descansava um pouco.

O Tanuki pegou o pilão, mas em vez de fazer o que lhe foi dito para fazer, avançou na velha mulher, a nocauteou com aquele pesado pedaço de madeira e então a matou, a cortou e fez uma sopa dela aguardando o retorno do velho fazendeiro.

O velho homem trabalhou duro nos campos o dia inteiro, e enquanto trabalhava, pensava com prazer que não teria mais que se preocupar com os estragos causados pelo destrutivo Tanuki.

Assim que o Sol se pôs, o velho fazendeiro terminou seu trabalho e se dirigiu para casa.

A sopa

Estava muito cansado, mas pensar na panelada de sopa quente o aguardando o alegrou. A ideia de que o Tanuki talvez tivesse escapado e tomado vingança contra sua esposa, no entanto, nunca passou por sua cabeça.

O Tanuki, por sua vez, assumiu o lugar da esposa do velho fazendeiro, e assim que avistou o fazendeiro chegando, surgiu na varanda da pequena casa e disse:

                – Finalmente você voltou. Preparei a sopa de texugo que você pediu e estive te esperando por um bom tempo.

kachi-kachi-yama-tanuki-engana-fazendeiro

O velho fazendeiro tirou suas sandálias de palha e sentou-se diante da sua pequena tigela para jantar.

O velho jamais sonharia que aquela não era sua esposa e sim o Tanuki que o aguardava, e então pediu por um pouco de sopa. Então, de repente o Tanuki voltou a sua forma natural.

                – Seu velho comedor de esposa! Olhe os ossos dela ali na cozinha!

O Tanuki fazia troça do velho e ria com gosto enquanto escapava da casa e corria para sua toca nas colinas.

O velho e sua tristeza

O velho fazendeiro foi deixado sozinho para trás. Mal podia acreditar no que acabara de ver e ouvir. Então, tão logo assimilou toda a verdade, ficou tão apavorado com todo aquele horror que desmaiou.

Depois de um tempo conseguiu se levantar e chorou copiosamente, chorou alto e amargamente.

Balançava de para frente e para trás em seu luto sem solução. Tudo parecia terrível demais para ser verdade, sua velha e fiel esposa tenha sido morta e cozinhada por aquele Tanuki enquanto ele trabalhava tranquilamente nos campos sem saber o que se passava em sua casa, ainda por cima se vangloriava em ter capturado aquele perverso animal que tinha arruinado suas plantações.

Um terrível pensamento o absorvia: tinha acabado de tomar a sopa feita com a carne de sua esposa por aquela criatura.

                – Oh céus! Oh céus! Oh céus! – lamentava em voz alta.

Usagi das montanhas

Não muito distante dali, nas mesmas montanhas, vivia um velho Usagi (coelho) gentil e de bom caráter.

Tinha ouvido o velho fazendeiro chorando e soluçando e decidiu verificar o que tinha acontecido e se poderia estender sua mão para ajudar seu vizinho.

O velho fazendeiro então contou tudo o que aconteceu para o Usagi. Quando terminou de ouvir a história, ficou possesso com o perverso e traiçoeiro Tanuki, disse ao homem que deixasse tudo por conta dele que ele vingaria a morte de sua esposa.

O velho fazendeiro sentiu-se confortado, e, limpando as lágrimas de seus olhos agradeceu pela bondade do Usagi em vir até ele neste momento de sofrimento.

kachi-kachi-yama-usagi-velho-fazendeiro

Ao ver o fazendeiro se acalmar, o Usagi voltou para sua casa para preparar um plano para punir o Tanuki.

O plano do coelho

No dia seguinte fazia um ótimo clima, então o Usagi saiu para procurar o Tanuki. Não o encontrou nos bosques, nem na encosta, nos campos ou em qualquer outro lugar, então, o Usagi foi até sua toca, lá encontrou o Tanuki escondido.

Ele estava com medo de sair de sua toca desde que escapou da casa do fazendeiro temendo sua ira. O Usagi então o chamou para sair:

                – Por que você está entocado em um dia tão bonito? Venha comigo cortar a grama da colina juntos.

O Tanuki que nunca duvidou que o Usagi era seu amigo aceitou o convite de bom grado, tudo para se manter afastado da vizinhança do fazendeiro e pelo medo de encontrá-lo.

O Usagi os levou a milhas de suas casas em um lugar onde a grama crescia alta, espessa e doce.

Ambos começaram a trabalhar para cortar o máximo de grama que podiam levar para casa para armazená-la como comida durante o inverno.

Quando eles conseguiram cortar toda a grama que quiseram, amarraram em fardos e cada um carregou sua parte na costa. Mas desta vez, o coelho fez o Tanuki ir na frente.

Pouco tempo depois da jornada de volta, o Usagi pegou uma pedra e um pedaço de aço, colidiu uma na outra na costa do Tanuki e passou a sua frente assim que o fogo começou a queimar a grama. O Tanuki ouviu o som crepitante e perguntou:

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                – Que som é esse? Creck creck?

                – Não é nada. – respondeu o Usagi. Só disse ‘creck creck’ porque essa montanha se chama Montanha Crepitante.

O fogo logo se espalhou no fardo de grama seca na costa do Tanuki. O Tanuki, ouvindo a crepitação da grama em chamas, perguntou:

                – O que é isso?

                – Agora nós chegamos a “Montanha em Chamas”. – respondeu o Usagi.

Naquela altura, o fardo de grama já estava praticamente todo queimado, bem como todo os pelos e a costa do Tanuki.

Ele percebeu o que estava acontecendo ao sentir o cheiro de fumaça da grama em chamas.

Cheio de dores e gritando, o Tanuki correu o mais rápido que podia para sua toca. O Usagi o seguiu e o encontrou deitado em sua cama gemendo de dor.

                – Mas que sujeito azarado que você é! – disse o Usagi. Nunca imaginei que isso pudesse acontecer! Trarei um pouco de remédio para que sua costa sare o mais rápido possível.

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Dito isso, o Usagi virou e foi embora sorridente, crente de que a punição do Tanuki já tinha começado.

Ele esperava que o Tanuki morresse com a queimadura. Para o Usagi, nada era tão ruim para aquele animal que era o assassino de uma pobre e indefesa mulher idosa que acreditou em sua palavra.

A pomada de pimenta

Ao chegar em casa, preparou uma ‘pomada’ misturando um pouco de molho com pimenta vermelha.

Depois de preparar tudo, levou a “pomada” até o Tanuki, mas antes de aplicar, avisou que poderia doer, mas que ele deveria ser paciente, seu remédio era bom para queimaduras e ferimentos de escaldaduras.

O Tanuki agradeceu e implorou que o Usagi aplicasse imediatamente, contudo, não existe palavras para descrever a agonia que o Tanuki sentiu quando a pasta de pimenta vermelha foi espalhada em sua costa, rolava de um lado para outro uivando em alto e bom som.

Ao observar aquela cena, o Usagi sentiu que a vingança pela esposa do fazendeiro tinha começado.

O Tanuki ficou de cama por cerca de um mês, e por fim, apesar das aplicações de pimenta vermelha, as queimaduras sararam e ele se sentia melhor.

O segundo plano

Quando o Usagi viu que o Tanuki estava se sentindo melhor, pensou em outro plano que levasse a morte daquela criatura, então, um dia fez uma visita para parabenizar o Tanuki por sua recuperação.

Durante a conversa, o Usagi mencionou que estava indo pescar, falava sobre as belezas de pescar quando o tempo estava agradável e o mar tranquilo.

O Tanuki ouvia prazerosamente a forma como o Usagi gostava de passar seu tempo, até mesmo esqueceu de suas dores e de seu mês de recuperação, pensou o quanto se divertiria se pudesse ir pescar também.

Perguntou ao Usagi se ele poderia levá-lo na próxima vez que fosse pescar, exatamente como pretendia o Usagi, e por óbvio, concordou.

Os barcos

Ao voltar para casa, o Usagi construiu dois barcos, um de madeira e outro de argila.

Depois que terminou de fazê-los, o Usagi parou e analisou seu trabalho. Sentiu que todos os seus problemas seriam recompensados caso seu plano fosse bem sucedido, e ele conseguisse matar o perverso Tanuki desta vez.

Finalmente chegou o dia em que o Usagi arranjou tudo para levar o Tanuki para pescar, manteve para si o barco feito de madeira e entregou o barco de argila para o Tanuki.

O Tanuki, que não entendia nada sobre barcos, fitou seu novo barco e pensou sobre a gentileza do Usagi em dar a ele tal presente.

Os dois entraram no barco e saíram para pescar. Depois de irem a uma distância considerável pela costa, o Usagi propôs ao Tanuki uma corrida para ver quem conseguia ir mais rápido com o barco, que aceitou o desafio, e então, ambos começaram a remar o mais rápido que podiam.

No meio da corrida, conforme o Tanuki remava, a água deixou a argila mole, em pouco tempo seu barco foi se despedaçando.

Desesperado, a Tanuki chorava e pediu que o ajudasse, mas o Usagi respondeu que ele estava vingando o assassinato da mulher e que era sua intenção por todo esse tempo.

O Usagi ficou feliz, acreditava que o Tanuki finalmente recebeu o que merecia por todos os seus crimes, agora ele se afogaria e não tinha ninguém para socorrê-lo.

Então, o Usagi pegou seu remo e bateu no Tanuki com toda a sua força até ver o barco de argila afundar e desaparecer.

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E foi assim que finalmente a promessa feita ao velho fazendeiro foi cumprida. O Usagi rumou seu barco em direção a costa, saltou do barco ao chegar na praia e correu direto ao fazendeiro para contar tudo o que tinha acontecido e como seu inimigo Tanuki morreu.

O velho fazendeiro o agradeceu com lágrimas nos olhos. Disse que não conseguia mais dormir a noite ou ter paz durante o dia pensando que a morte de sua esposa não fora vingada, mas que a partir daquele momento ele seria capaz de dormir e comer como antigamente.

Ele implorou ao Usagi para que permanecesse com ele e dividisse a casa, e desse dia em diante o Usagi permaneceu com o velho fazendeiro, se tornaram grandes amigos e viveram juntos até seus últimos dias. Fim.

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