A uberização do trabalho no Japão vem afetando negativamente a vida daqueles que dependem de aplicativos para gerar alguma renda. Quem acaba sofrendo mais são os entregadores autônomos com cargas de mais de 12 horas por dia.
Afinal, com as restrições de distanciamento físico e aglomerações, as compras online dispararam e o e-commerce bateu recordes mundo afora.
Porém, esses produtos precisam ser escoados até o consumidor final e alguém precisa realizar esse serviço.

E, como uma solução sempre vem acompanhada de um novo problema, aplicativos e o próprio e-commerce são plataformas comerciais pouco ou nada regulados.
Ou seja, sem a intermediação do estado nas relações trabalhistas. Então, o lado mais forte sempre terá vantagem.
O consumo online impulsionou a criação de mais de 27 mil empresas de transporte só no Japão entre os anos fiscais de 2016 a 2020. Mas apesar de toda essa prosperidade, os operadores da ponta de lança dessa vasta rede logística parecem fora dela.
Uberização do trabalho no Japão
Os trabalhadores autônomos são os que não são pobres o suficiente para serem considerados pobres pelo estado e também não tem estabilidade econômica, pois vivem de trabalhos irregulares e temporários.
Não é incomum encontrar nessa massa de invisíveis (dentro e fora do Japão) pessoas profissionalmente muito bem qualificadas. Há também muita gente com anos de experiência e que acabaram demitidos de seus empregos.

Muitos dos que não conseguiram uma posição em suas áreas de atuação, perderam seus postos ou quem precisa ganhar mais, acabam trabalhando irregularmente, na maioria das vezes sem direitos ou garantias.
Relatos da uberização do trabalho no Japão
No Japão, um homem de 44 anos que abriu seu próprio negócio de entregas conseguiu um contrato com uma empresa terceirizada, a Amazon Japan.
Hoje, ele trabalha cerca de 13 horas por dia entregando produtos com raras pausas para comer ou descansar.
O pior melhor
O homem de 44 anos, que não quis se identificar, contou que trabalhava como cuidador, porém, recebia apenas JP¥ 180 mil (U$ 1.573,56) por mês, um valor menor para suas necessidades e que, por consequência, gerou uma dívida de JP¥ 1,8 milhões (U$ 15.735,64).
Com expectativas de ganhar mais trabalhando sozinho, decidiu empreender no negócio de logística, transporte e entrega.
Para isso, precisou investir e adequar seu próprio veículo para estar apto a receber os produtos armazenados nos galpões.

À primeira vista, o homem pôde praticamente dobrar seu orçamento ao saltar de JP¥ 180 mil para cerca de JP¥ 350 mil (U$ 3.059,71) mensais – brutos.
Porém, ao deduzir os seus custos de operação como gasolina, por exemplo, o que sobra são JP¥ 200 mil (U$ 1.748,40).
Não obstante, o homem recebe JPY 17 mil (U$ 148,61) por dia independentemente da quantidade de produtos que ele tenha que entregar.
Logo, para ganhar U$ 174,84 a mais do que em seu antigo emprego, ele começa às 09:00 em jornadas que duram até 13 horas.
“A vida não está fácil”
“Me sinto forçado a trabalhar excessivamente. Sinto que se continuar nesse ritmo, posso sofrer um acidente ou ter um colapso, acredito que essas encomendas ainda possam me matar”, disse o homem de 44 anos em entrevista ao The Mainichi Shimbun e prosseguiu.
“Ainda devo JPY 1 milhão (cerca de U$ 8.760,00), estou pagando por volta de 50 mil (U$ 437,00) por mês, então, a vida não está fácil. Gostaria de me casar, mas não tenho nenhuma poupança e todos no meu trabalho são homens”.

O homem trabalha como agente terceirizado da Amazon Japan desde 2017. Até janeiro de 2020, realizava cerca de 100 entregas por dia.
O número foi subindo a um ponto em que, dede maio de 2021, são por volta de 200 entregas por dia, ou seja, o dobro.
“Me sinto empurrado até o limite de entregas que é possível realizar. Por um momento, meio que me senti depressivo, o salário diário não mudou, o que mudou foi o aumento drástico no trabalho”.
“Mas a verdade é que estou sendo forçado a trabalhar muito. Eu gostaria de ver mudanças reais como um valor mínimo por unidade de itens a serem entregues e um limite diário sobre quantas entregas se pode realizar em um dia”.
Amazon Flex
Em 2019, a Amazon Japan lançou em Tokyo uma iniciativa que já se espalhou por todo o país.
É um programa aberto para pessoas a partir de 20 anos que tenham um pequeno carro utilitário para realizar entregas para a gigante estadunidense.
Em tese, os trabalhadores que definem as regiões atendidas e escolhem também quantas horas por dia trabalharão, que, também em tese, são de 2 a 8 horas por dia. Mas, sem regulamentação a realidade é outra a uberização do trabalho no Japão mostra sua realidade.
Um jovem na casa dos 30 anos que tinha um contrato de entregador com a Amazon Flex, assim que o programa começou em 2019, trabalhava 8 horas por dia, das 07:00 as 15:00, recebia JPY 16 mil (U$ 140,00) por dia e se sentia satisfeito com o trabalho e com a renda.

Já em outubro de 2020, sem mais nem menos, seu contrato com a Amazon Japan foi abruptamente cancelado.
Por e-mail, a companhia informou: “Recebemos múltiplas reclamações de produtos não recebidos de nossos clientes e enviamos repetidamente advertências em seu e-mail”.
Apesar de apresentar queixas contra a rescisão contratual e informar que nunca houve pedidos não entregues ou quaisquer outros problemas, seus argumentos foram ignorados. “Sinto que esse problema ficou muito mal resolvido, e isso eu não posso aceitar”.
Subemprego, subcontrato, subsalário
Dados do Ministério da Terra, Infraestrutura, Transportes e Turismo informam que existiam 150 mil empresas de transporte de bens no Japão entre o ano fiscal de 2010 a 2016. No final do ano fiscal de 2020, ou seja, 31 março de 2021, eram 177 mil.
Mas, os profissionais autônomos não estão protegidos pela lei Labor Standards Act.

Essa lei promulgada em 7 de abril de 1947 busca assegurar condições de trabalho que atendam às necessidades dos trabalhadores para viverem vidas dignas de seres humanos” piso salarial e horas de trabalho regulada.
Uma Pesquisa realizada entre abril e novembro de 2021 pelo sindicado Keikamotsu Union de Yokohama com profissionais e trabalhadores autônomos revelou que:
- 25% dos trabalhadores autônomos trabalham 12 horas por dia ou mais;
- 25% se sentem forçados a trabalhar excessivamente;
- 40% informaram que o valor de seu frete vem sendo unilateralmente reduzido.
Relações abusivas da uberização do trabalho no Japão
Comentando sobre os problemas enfrentados pelos autônomos do setor, Hideharu Takahashi, presidente do sindicato Keikamotsu Union conta sobre uma cláusula que viu em um contrato feito pelas gigantes e um autônomo.
Ela informava que, em caso de entrega no local errado, seria cobrado do trabalhador JP¥ 30 mil (U$ 262,26). Takahashi também comentou sobre a uberização do trabalho no Japão e os contratos fora da regulamentação.

“Ser despedido unilateralmente ou forçado a realizar algo desvantajoso para si é algo violento. Contudo, caso os trabalhadores reclamem sobre suas condições de trabalho, há enormes possibilidades do contrato ser cancelado e a pessoas não conseguirem mais trabalhar. Autônomos estão sempre em uma posição mais fraca do que seus empregadores”, disse Takahashi.
No Reino Unido, a Über foi obrigada aplicar regras trabalhistas mínimas aos motoristas do aplicativo. Já nos EUA, a Amazon espionou os funcionários e conseguiu impedir a criação de um sindicato para o setor.
Sobre o problema dos trabalhos informais e trabalhadores de aplicativos e e-commerce, o professor em direto trabalhista pela Otaru University, Hideo Kunitake afirmou:
“Alguns países conseguiram regular os trabalhos freelancer (menos em casos que as companhias provaram que de fato era um contrato com autônomos), é uma tendência global responder a esse tipo de problema trabalhista. Também precisamos avançar com a revisão da abrangência das leis trabalhistas no Japão”.
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